sábado, 19 de março de 2011

Só ama de verdade quem enxerga além da aparência

Recebi uma carta, na qual a autora fez esta confissão:
“Tenho 25 anos, sou bonita, instruída, solteira, moderna, porém me desculpe a franqueza, só dou valor às coisas novas. Sei que o senhor não é jovem, mas o admiro por que nos seus textos sempre encontro bons conselhos e grande conhecimento da vida.”
A moça declara, nessa carta, estar amando um homem de 60 anos. E mostra-se confusa, pois contra a sua vontade, a sua natureza, agora o seu coração palpita por um sexagenário:
“Talvez eu tenha enlouquecido. Amar um velho, eu que sempre detestei as coisas velhas! Mas é verdade, eu o amo com muita ternura, há cinco anos. O tempo me provou isto. Diga-me, escritor Fernando Jorge, eu sou uma anormal, uma degenerada? Devo procurar um psiquiatra?”.
Prezada desconhecida, acalme-se. Jano, deus da mitologia romana, era representado com uma cabeça de duas faces contrapostas, uma voltada para frente e outra para trás. Pois bem, o deus Amor tem mais de mil faces. Não existe um só tipo de amor. As pessoas podem amar uma alma ou apenas um rosto, amar movidas pela atração física ou pela atração espiritual. Se é por causa da alma é o amor de Carolina pelo franzino e epilético Machado de Assis, se é por causa do físico, é o amor da grande atriz Sarah Bernhardt pelo belo ator Jacques Damala...
Resiste a tudo, o amor verdadeiro, nem a velhice e a morte conseguem destruí-lo. A grega Eós, isto é, a Aurora, irmã de Hélios, o Sol, e de Selene, a Lua, apaixonou-se pelo maravilhoso Titono e pediu a Zeus a graça de conceder a imortalidade ao amado. Mas ela se esqueceu de solicitar a esse rei do Olimpo, para Titono, a juventude eterna. Pobre Titono, os seus cabelos se embranqueceram, enrugou-se-lhe o rosto. Eós tentou rejuvenescer o companheiro, alimentando-o com a ambrósia, o manjar dos deuses. Desgostosa, inconformada, a núncia do Sol encerrou Titono num recanto sombrio, onde ele perdeu a aparência humana e ficou do tamanho de uma cigarra. Então Eós o transformou nesse inseto.
Minha jovem que ama um senhor de 60 anos: se o amor da Aurora dos “dedos cor-de-rosa”, como Homero a chamou, fosse espiritual e não físico, ela aceitaria a decrepitude de Titono. Amaria até a sua velhice, os seus cabelos brancos, as suas mãos enrugadas, porque o amor verdadeiro transforma a feiúra em poesia e beleza.
Só ama de verdade quem enxerga além da aparência. E a propósito disso, reproduzo aqui o soneto “Feia”, do poeta português Júlio Dantas:

“Não te amei. E por quê? Porque não há em ti
A graça que perturba, o sorriso que enleia:
Porque eu sou cego, filha, e porque tu és feia,
Porque te olhei, amor, e porque não te vi.

Foste minha e - vê lá! - nunca te conheci.
A tua alma, tão bela e tão nobre - ignorei-a.
Quis beleza, frescura - e construi na areia:
Só comecei a amar-te, hoje, que te perdi.

Amor espiritual, amor sem esperança,
Amor que não deseja e, por isso, não cansa,
Amor contrito e puro, arrependido e triste...

Hoje estou convencido, ó minha gloriosa:
A paixão sem beleza é a mais perigosa;
O amor por uma feia é o maior que existe.”

Júlio Dantas acertou. Quem ama uma pessoa sem se importar com a sua aparência, ama mais, bem mais.
Concluo este bate-papo dizendo à minha prezada desconhecida: se você, com os seus 25 anos, ama de fato esse homem de 60 anos, você não é uma anormal e nem deve procurar um psiquiatra. Devem procurar os psiquiatras, entretanto, todos aqueles que por preconceito se escandalizam diante dos amores verdadeiros.
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Escritor e jornalista, Fernando Jorge é autor do livro Se não fosse o Brasil, jamais Barack Obama teria nascido, lançado pela Editora Novo Século

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