segunda-feira, 3 de outubro de 2016

A fúria absurda de um ator

Já narrei, no meu livro “Cale a boca, jornalista!”, um episódio tragicômico da vida do grande ator de teatro Procópio Ferreira, mas é interessante, aqui em nosso despretencioso bate-papo, evocar esta história outra vez, pois ela prova como o ódio e a fúria dos mandões contra a imprensa do país de Lula podem impregnar a alma de um artista, modificando-lhe a personalidade.
Em 1º de julho de 1933, apareceu no Correio da Manhã uma crônica de Gondin da Fonseca, que ele assinou com e pseudônimo de M. Cláudio. Conforme escreveu o autor desta crônica, o nome João é indispensável na feitura dos pseudônimos:
“Vão-se de cada vez tornando-se mais raros os pseudônimos sem João: Mendes Fradique, Tristão de Ataíde, Oscar d’Alva, Procópio Ferreira.
O caso deste último é interessante. Nascido no Funchal (ilha da Madeira), Procópio, que se chama, efetivamente, segundo já li em livro, João do Quintal Ferreira Júnior, veio pequeno para o Brasil e aqui estudou, cresceu e se fez homem. Entrando para o teatro, adotou um pseudônimo que a multidão já vai decorando e celebrizando. Amigos dos nossos homens de boemia e de letras, auxiliou ou custeou integralmente do seu bolso a publicação dos versos de Moacyr de Almeida – o saudoso poeta falecido com 23 anos – e das Fábulas, de Catulo Cearense. Além disso, quantas peças nacionais tem interpretado no decurso deste último decênio? Quantas?
E Gondin acrescentou de modo lírico, pondo o artista nos carrapitos da lua:
“Todavia, mais do que qualquer comendador, presidente de sociedades regionais portuguesas, Procópio não esquece a Mãe-Pátria, o velho Portugal, e assim é que, nas suas companhias, admite de preferência atores lusitanos. Atores, atrizes, comparsas, empregados subalternos, etc. Poder-se-á, no entanto, com justiça, negar aplauso a tal atitude? Não, por certo. O que ás vezes acontece é que, na confusão de prosódias verificada no palco da companhia de Procópio, nasce para o espectador um vago mal-estar: dir-se-ia que as peças são bilíngues”...
Célere, impetuoso, após ler estas linhas no Correio da Manhã, o ator pegou um revólver e voou até a redação do periódico, a fim de matar M. Cláudio. De fato, como salienta Gondin da Fonseca, a pecha de português doeu mais em Procópio do que qualquer outra que lhe pudesse ser lançada, pois ele se sentiu “injuriado, aviltado, sujo em sua honra”. Só encontrou um caminho: a desafronta à bala. A muito custo, informa Gondin, “um redator do jornal o dissuadiu de levar por diante os seus propósitos sanguinários”. Mas Procópio impôs ao Correio da Manhã a publicação do seguinte termo do registro de nascimentos da 3ª Pretoria Cível da freguesia de Santo Antônio.
Depois da publicação do termo, a Colônia lusa mostrou-se ofendida. O embaixador de Portugal explicou:
-E por duas razões. Primeiro, porque ele não provou chamar-se Procópio; segundo, porque se envergonhou de ser português. Arre! Ser português é desdouro?

Temos a impressão de que Procópio Ferreira, influenciado pelo assalto dos tenentes ao Diário Carioca, ocorrido no ano anterior, também resolveu socorrer-se da violência, da força bruta, para “desenxovalhar a sua honra”. Portanto convém repetir: o ódio, a fúria dos mandões contra a imprensa, podem impregnar o espírito de um artista, modificando-lhe a personalidade...