quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

O BRASIL JÁ FOI GOVERNADO POR UM LOUCO


Sim, é isto mesmo, já tivemos um presidente insano, lelé da cuca. O Brasil já foi governado por um louco. Narrei tal fato no segundo volume da minha obra “Getúlio Vargas e o seu tempo”, que me custou quase trinta anos de pesquisas.

Delfim Moreira ocupou a presidência da República em 1918, após a morte de Rodrigues Alves. Ele desembarcou no Rio de Janeiro, esclareceu Joaquim de Salles, “mais morto do que vivo”. De mísero aspecto, com tez macilenta, olheiras profundas e "debilidade gritante", parecia incapaz de se manter quinze dias naquele cargo. Frisa o citado memorialista:

“Delfim fora atingido pelos botes de uma senilidade precoce”.

Afinal de contas, qual era a doença de Delfim Moreira? No livro “A alma do tempo”, Afonso Arinos de Melo Franco menciona a “progressiva incapacidade mental" desse presidente. Leal de Souza, numa obra sobre Getúlio Vargas, é mais categórico:

“Louco, assinando papéis sem ler, ou lendo-os sem compreendê-los, Delfim Moreira aguardava substituto, necessitando de um manicômio.”

Dois embaixadores, Heitor Lyra e Jayme de Barros, evocaram este caso, o primeiro no livro “Minha vida diplomática”, onde se refere aos sintomas iniciais da doença de Delfim, moléstia que pouco depois o deixaria "apatetado” e "irresponsável", até mesmo “reconhecidamente demente”, e o segundo também nas suas memórias, intituladas “Chão de vida”, nas quais acentua que ele, Delfim Moreira, conforme se dizia, mostrava-se sujeito “a imprevistas perturbações mentais, interrompendo conversas sérias com perguntas alheias ao assunto, todas surpreendentes".

Quem governava o Brasil, sendo uma espécie de “eminência parda" - tal notícia se ouvia no meio político - era Afrânio de Melo Franco, mineiro como Delfim e ministro da Viação e Obras Públicas.

Narra José Eduardo de Macedo Soares que, certa vez, ele foi ao Palácio do Catete, em companhia de Rui Barbosa. Ambos, com audiência marcada, dirigiram-se à ante-sala do gabinete do presidente, ali permanecendo por certo tempo. José Eduardo notou uma coisa: a porta do gabinete se entreabria e se fechava de instante a instante. O movimento se repetiu várias vezes, sem inspirar a Rui qualquer comentário. Às subitas, porém, a porta se escancarou e o próprio Delfim Moreira apareceu:

-Boa tarde, senhor conselheiro, queira entrar, por favor.

Logo após a audiência, segurando o amigo pelo braço, Rui Barbosa pronunciou estas palavras, diante da sede do governo:

-Você viu, José Eduardo, os movimentos daquela porta? Pois é! Até um pobre alienado pode ocupar a presidência da República. A mim, só a mim, negam-me esse direito.

Um fato havia produzido forte abalo no sistema nervoso do presidente, explica o jornalista João Lima: a notícia de que o surpreenderam em “colóquio amoroso”, com uma professora pública. Esta se suicidara, devido as proporções do escândalo, e Dormund Martins, no vespertino “A Lanterna”, abriu colunas para comentar o assunto, dando mais munição ao arsenal dos linguarudos.    
Ai temos, não resta dúvida, nessa perturbação mental do político mineiro, um episódio muito importante, suprimido de todos os compêndios de história do Brasil. Muito importante, sim, porque ele era o chefe do Executivo, e compete-nos indagar se a sua doença influiu nos destinos do nosso país.

domingo, 24 de fevereiro de 2019

DRUMMOND PERDOOU O AGRIPPINO...


Carlos Drummond de Andrade, quando foi lançada a quarta edição do meu livro sobre o Aleijadinho (atualmente na sétima), analisou o prefácio da obra, de autoria do Agrippino Grieco, visto na época como o maior crítico literário do Brasil:
-Você obteve elogios de um voraz bicho-papão da nossa literatura, tão guloso, tão triturador de escritores e poetas medíocres, que quanto mais devorava, mais queria triturar e devorar.
Eu respondi:
-É verdade, mas você também recebeu algumas carícias da fera do Méier (Agrippino morava nesse subúrbio carioca), afagos inseridos no livro Evolução da poesia brasileira, publicado em 1932 pela Ariel Editora.
-As carícias – emendou o poeta – apareceram misturadas com mordidas. Quer ver?
Drummond levantou-se da cadeira e pegou numa estante o citado livro do Agrippino. E passou a ler, em voz alta, trechos da parte referente a ele:
“Inteligência em que há real personalidade... A rigor, não está ainda absolutamente seguro do seu pensamento, absolutamente seguro dos seus meios de expressão... cai no artificialismo da ingenuidade que o espírito mata logo... nota-se-lhe uma contenção robusta e sóbria, de quem sabe dominar a matéria poética... o sr. Carlos Drummond sabe prender-nos...”
Depois de ler estas passagens da crítica do Agrippino, o itabirano salientou:
-Repito, Fernando, são carícias misturadas com mordidas. Carícias nas quais se sente o peso da pata do tigre. Desculpe-me se você é amigo e admirador do Agrippino Grieco, porém observe a sua incoerência. Ele garantiu que em minha inteligência há “real personalidade” e depois vê insegurança no meu pensamento e nos meus recursos de expressão. Olhe, se possuo “real personalidade”, isto pressupõe firmeza no campo da literatura e portanto é inadequado chamar-me de inseguro...
Comecei a rir e o poeta também. Drummond admitiu:
-O Agrippino é espirituoso, reconheço. Certa ocasião saíram de mim estas palavras: “Desconfio que escrevi um poema”. Ele comentou: “Estes mineiros são muito desconfiados”...
Duas frases de Drummond, a propósito do livro Evolução da poesia brasileira:
-Na parte concernente à minha pessoa, o Agrippino acentua nessa obra que eu às vezes desço a “efeitos fáceis”. Para provar isto, cita alguns versos meus.
Drummond se pôs a recitar os versos da sua poesia “Política literária”:

“O poeta municipal
discute com o poeta estadual
qual deles é capaz de bater o poeta federal.
Enquanto isso o poeta federal
tira ouro do nariz.”

Ele perguntou se eu podia citar algumas frases irreverentes do Agrippino. Fui dizendo:
-Só houve um cristão, Cristo. A burrice é contagiosa, o talento não. Duas ruínas: a casa e o dono. Fulano é mais mentiroso que elogios de epitáfios. Oswaldo Orico, escritor dos quatro zeros no nome. Aquele canalha se estorcia, à maneira de um verme pisado. Gustavo Barroso é autor de livros tediosos como salas de espera. Estilo mais engomado que o hábito de uma freira do Colégio Nossa Senhora de Sion. As horas de ócio do juiz Ataulfo de Paiva são 24, todos os dias. O principal personagem do romance Mulheres fatais, do Cláudio de Sousa, é o tédio. Sílvio Romero e José Veríssimo insultavam-se mutuamente e ambos tinham razão. Em geral, a Academia Brasileira de Letras elege apenas um animal, agora elegeu dois: Carneiro Leão (representante do Brasil no Primeiro Congresso da UNESCO, realizado em Londres, no ano de 1945). Algo simiesco, quase idêntico a um orangotango, Catulo da Paixão Cearense incorria em três mistificações: não era Catulo (insigne poeta romano), não tinha Paixão, a não ser por si mesmo, e sequer era cearense, pois nasceu no Maranhão.
À medida que eu, dotado de boa memória, soltava estas frases do Agrippino, o Drummond não reprimia as suas risadas. E declarou:
-Fernando, devido a tais frases, sinto-me no dever de perdoá-lo, por ter me criticado injustamente.
Contei então ao poeta que o autor de Estátuas mutiladas recusou uma homenagem do governo do Rio de Janeiro, disposto a dar o seu nome a um viaduto do Méier. Agrippino reagiu:
-Passar por cima de mim? Só depois de morto!
Embora fosse bem econômico no gargalhar, Carlos Drummond de Andrade gargalhou como um cidadão em paz com o mundo e em pleno gozo de uma boa saúde...

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

Um grande poeta da língua portuguesa


O uso do punhal, lançado pela editora Escrituras, prova que ele é um grande poeta da língua portuguesa. Ninguém ilude a posteridade. Esta juíza imparcial o colocará entre os maiores da moderna literatura brasileira. Talento é talento e reluz como os diamantes sem jaça.
Impressionou-me, no livro O uso do punhal, a densidade de sua poesia originalíssima. Não posso compará-lo a nenhum outro grande poeta nosso. Apenas afirmo que ele está na mesma altura de Drummond, de Manuel Bandeira, de Cassiano Ricardo. Declamei, com voz cheia de emoção, estes versos da página 52 do seu livro:

“No rosto a cicatriz,
corte fundo para sempre,
ferida que não se diz.

Não ficou marca de sangue
mas a agulha que penetra
as sílabas vãs de letras vis.

Na pele a cicatriz,
navalha que risca e escreve
as letras finas do giz.

Na boca a cicatriz,
o silêncio que se consente
e nunca se contradiz.

Nos dentes a cicatriz,
daquele que morrer não pôde,
não pôde porque não quis”.

O virtuosismo da composição é admirável, porém mais admirável é o seu conteúdo emocional. Só quem sofreu e se desiludiu, após mergulhar no fundo abismo da angústia indelével, poderá sentir com mais intensidade a beleza dessa poesia repleta de dor digna, estóica. Álvaro Alves de Faria, no poemeto “A cicatriz”, exprime o inexprimível, atingindo o mesmo patamar, a mesma profundidade do Fernando Pessoa que escreveu os seguintes versos:

“Contemplo o lago mudo
Que uma brisa estremece,
Não sei se penso em tudo
Ou se tudo me esquece.

O lago nada me diz,
Não sinto a brisa mexê-lo,
Não sei se sou feliz,
Nem se desejo sê-lo.

Trêmulos vincos risonhos
Na água adormecida.
Por que fiz eu dos sonhos
A minha única vida?

O aniquilamento, na poesia de Álvaro, é ressurreição, metamorfose, como a crisálida se transforma em borboleta:

“Três golpes do lado esquerdo
bastam para pôr fim a tudo:
depois é só viver a eternidade”.

Observem a sutileza. Álvaro não escreveu “viver na eternidade” e sim “viver a eternidade”, pois na primeira expressão há materialismo, apego à carne, e na segunda a existência imaterial, espiritual, a libertação exaltada pelo simbolista Camilo Pessanha (1867-1926), poeta luso viciado em ópio e autor do volume Clepsidra, aparecido em 1920:

“Roubos, assassinatos!
Horas jamais tranquilas,
Em brutos pugilatos
Fracturam as maxilas...

E eu sob a terra firme,
Compacta, recalcada,
Muito quietinho. A rir-me
                                 De não me doer nada.”


Dilaceramento é a poesia de Álvaro Alves de Faria, mas ela o prende à vida. Sem a poesia, Álvaro deixaria de respirar:

“A poesia feriu-me para sempre

no tropeço de um poema que não termina”.

Augusto dos Anjos, no soneto “Infeliz”, de 1901, aconselhou à sua alma:

“E fica no teu ermo entristecida,

Alma arrancada do prazer do mundo,

Alma viúva das paixões da vida”.

Meu querido Álvaro, grande poeta do Brasil, continue a extrair versos de sua alma, que é brasa cor de cinza. Ela flameja no cárcere da vida. Você é o triste peregrino da solidão, desse imenso deserto de areias frias.