domingo, 19 de dezembro de 2010

SUA EXCELÊNCIA, O GATO

Encontrei um velho amigo na rua. Achava-se com ar sorumbático, ele que sempre foi expansivo. Explicou-me:
-Estou aborrecido. Alberto morreu. Creio que do coração. Era gordo em excesso, coitado! Tão discreto, tão educado...
Alberto - devo esclarecer ao leitor - era um velho gato, obeso e preguiçoso, que vivia ronronando em cima de um macio sofá: tinha o orgulho de um lorde, a pachorra de um filósofo socrático. Retribuía as carícias com frieza, embora não fosse malcriado. Havia nele, no seu olhar metálico, nos seus movimentos elásticos, compassados, qualquer coisa de solene e aristocrático. Eu, que sou democrata, nunca pude suportar os seus modos altivos. Meu amigo o adorava.
O gato tem fama de ser um animal egoísta, hipócrita e feroz, mas não são poucos os que o defendem e o preferem ao cão, o qual, segundo diversos psicólogos, é demasiado subserviente, sem a dignidade e a personalidade desse felino...
A gatolatria é um fenômeno milenar.
Narra Seignobos, na sua História da Civilização, que um século antes de Cristo, tendo certo cidadão romano matado um gato em Alexandria, o povo se amotinou, apoderou-se dele e o esquartejou, apesar dos pedidos do soberano e não obstante o grande medo que inspiravam os filhos da cidade de Augusto.
Os egípcios viam no gato um animal divino. Quando algum bichano morria, o dono, em sinal de luto, raspava a sobrancelha esquerda.
Maomé, diz a lenda, possuía uma gatinha chamada Muezza que, certa ocasião, adormeceu sobre a manga do seu hábito. O profeta, para não acordá-la, preferiu cortar a roupa. Muezza, grata e satisfeita, cada vez que ele voltava para casa, ia recebê-lo. Maomé, comovido pelo reconhecimento do animal, concedeu aos gatos um lugar no paraíso islâmico e ainda o privilégio de caírem de pé.
Richelieu, o maquiavélico ministro de Luis XIII, tinha quatorze gatos, assim chamados: Mounard-Ie-Fougueux, Soumise, Serpolet, Gazette, Ludovic-le-Cruel, Mimie Paillon, Feliman, Lúcifer, Lodoiska, Rubis-sur-l'Ongle, Pyrame, Thisbé, Racan e Perruque. Estes dois últimos tinham estes nomes por haverem nascido em cima duma velha cabeleira do acadêmico Racan. Pela forma com que Richelieu acariciava os seus bichanos, podia fazer-se idéia do estado de sua alma. Se passava suavemente a mão sobre o pêlo do felino, era sinal de bom humor. Se as carícias fossem rápidas, nervosas, isto queria dizer o contrário. O rei, conhecendo o temperamento do seu ministro, indagava quando pretendia conversar com ele:
-De que jeito Richelieu afagou seus gatos?
Os gatos me intrigam, causam curiosidade. Suas maneiras indolentes, seus passos sorrateiros, suas artimanhas me fascinam. Bicho estranho! Quanto mistério, quanta profundidade nas suas pupilas verdes! É o animal sutil por excelência, repleto de cautela, de agudeza. Dir-se-ia que tem alma de odalisca e de espião...

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

A INVEJA É UMA CADELA RAIVOSA

É jornalista da chamada Grande Imprensa, redator econômico de jornal poderoso, um dos principais da cidade de São Paulo. Há cerca de três meses, meio alcoolizado, aproximou-se de mim na Alameda Barão de Limeira e insultou-me. Apliquei-lhe uma bofetada. Não se atreveu a reagir.
Devido ao sucesso do meu livro Se não fosse o Brasil, jamais Barack Obama teria nascido, esse sujeito vive fazendo esta pergunta nas livrarias:
-O livro do Fernando Jorge está saindo?
Ao ouvir que sim, ele empalidece e volta a perguntar:
-Mas sai mesmo, é comprado?
A confirmação o deixa ainda mais pálido, como alguém prestes a desmaiar.
Um vendedor de uma conhecida livraria da Avenida Paulista, meu amigo, percebeu que o fulano é um grande invejoso e ao ouvir a pergunta, responde assim:
-O livro do Fernando Jorge sobre o Obama é um dos mais vendidos.
Aí o invejoso quase desfalece. E o meu amigo exagera, para aumentar a sua inveja:
-Hoje, eu e os meus colegas já vendemos mais de cinquenta exemplares.
De olho amarelo, com a cara esverdeada de quem tem icterícia, o invejoso rosna:
-Não pode ser! Não pode ser! Eu não acredito!
Contendo o riso, o meu amigo confirma:
-É a pura verdade.
Na semana passada esse amigo me disse:
-Seu Fernando, o homem parece que vai morrer, quando garanto que o seu livro está sendo muito vendido. Se eu continuar a falar desse modo, acho que ele vai ter um enfarte.
Soltei estas palavras:
-Você sabe como é o nome da sua doença? Ele sofre de invejaite aguda.
Num domingo o telefone da minha casa tocou, às onze horas da noite, e eu atendi. A voz enrolada, gaguejante e pastosa do grande invejoso, golpeou o meu ouvido:
-Fer... Fer... Fer... Fernando! Vo... Vo... vo... vo...vo... você pensa que... que... que... que... o meu jornal vai... vai... vai publicar uma no... no... no... nota sobre o seu li... li... livro de bos... bos... bos... ta... ta... ta...? Não, não vai não! Eu não vou deixar!
Era a voz de cachaceiro mergulhado num porre monumental. Até o telefone dava a impressão de feder a álcool. Desliguei o aparelho.
Duas semanas depois, outra vez no porre, o pinguço ganiu no telefone:
-Fer... Fer... Fer... Fernando! Eu vou... vou... vou matar o meu colega que elogiou você num artigo aqui do... do... aqui do jornal... vou, vou matar ele, vou, vou, vou, vou!
Ouvi um som que parecia o ronco de um suíno e, em seguida, palavrões, xingamentos. A causa da fúria: o jornal do invejoso de fato havia publicado um artigo cheio de elogios ao meu livro...
O rancor desse animal é explicável. Uma obra de sua autoria, lançada em 2005, não teve nenhuma repercussão. Isto o feriu, azedou-lhe a alma pequenina e a fez ranger de despeito, de revolta louca, digna de ser enfiada em camisola-de-força.
A inveja é uma cadela raivosa, fustigada pelo diabo, e que só quer rosnar e morder.
Pertence à numerosa família dos grandes invejosos o jornalista pau-d’água que me detesta. Um dos seus antepassados, suponho, foi Nonius Asprenas, oficial do imperador romano Augusto (63 a.C – 14 d. C). Devido a um acidente, Nonius ficou aleijado. Sentindo imensa inveja dos seus amigos saudáveis, ofereceu-lhes uma festa, durante a qual cento e trinta deles morreram. O invejoso colocara veneno nos alimentos.
Perigosa, frequentes vezes mortífera, é a família dos grandes invejosos.
Não conseguindo suportar a fama do general Aécio, vencedor do huno Átila nos campos cataláunicos, em 451 da nossa era, o imperador Valentiniano III, do Ocidente, mandou matá-lo.
Açulado pelos latidos da cadela Inveja, cujos dentes pontiagudos não largam as suas presas, Henrique III, rei da França de 1574 a 1584, tornou-se o responsável pela morte do Duque de Guise. Como castigo de Deus, ele tombou assassinado por Jacques Clement, um frade fanático.
Incapaz de aplaudir a genialidade de Mozart, segundo informam vários biógrafos desse músico, o compositor italiano Antonio Salieri o envenenou, agadanhado pela inveja.
Eu sentiria um certo prazer, talvez orgulho, se o jornalista que me execra tivesse algum valor, pois ser invejado por pessoas inteligentes, de talento, equivale a receber uma homenagem...
O poeta Antônio Sales (1868-1940), fundador da célebre Padaria Espiritual do Ceará e autor de belas quadrinhas publicadas diariamente no Correio da Manhã do Rio de Janeiro, produziu estes versos, comparando a inveja ao estrume:
“Deixa que a gente invejosa
Fale de ti com ciúme:
A flor precisa de estrume
Para ficar mais viçosa”
Embora não me considere um lírio ou um cravo, eu posso dizer: o jornalista invejoso, obcecado por mim, é o estrume do meu florido e bem cuidado jardim de sonhos, de poesia, de elevadas aspirações...