segunda-feira, 22 de abril de 2019

LUÍS CARLOS PRESTES DESMENTIU DRUMMOND


Em 1966 estive com Carlos Drummond de Andrade inúmeras vezes e numa dessas ocasiões ele me disse, alegre:
-Sinto-me realizado, por causa de um filme.
Explicou, vendo a curiosidade no meu olhar:
-Assisti ao filme O padre e a moça, do Joaquim Pedro de Andrade, no qual aparecem Paulo José, Helena Ignez, Mário Lago, Fauzi Arap.
-E como é o enredo desse filme?
-Mostra um padre que chega a uma cidade

atrasada do interior de Minas e que fica perturbado pela beleza de Helena Ignez. O Glauber Rocha elogiou muito O padre e a moça, assegurando que o seu tema é digno de um Luís Buñuel, o genial diretor do filme El perro andaluz.
Drummond prosseguiu, após ligeiro silêncio:
-Agora você vai compreender o motivo da minha euforia. O padre e a moça foi inspirado no meu poema “Negro amor de rendas brancas”.
Em seguida o poeta declarou, pausadamente:
-O Joaquim é filho do nosso amigo Rodrigo Melo Franco de Andrade, o homem que me apresentou a você. Ele é afilhado do Manuel Bandeira e em Congonhas do Campo, durante um ano, fez parte da equipe de restauração das sessenta e seis esculturas em madeira dos Passos da Via Sacra, da autoria do Aleijadinho e dos seus auxiliares.
Maria Julieta nos serviu um cafezinho e Drummond continuou a informar:
-No ano passado, em novembro, o Joaquim foi preso com o Glauber Rocha, o Flávio Rangel, o Antônio Callado, o Márcio Moreira Alves e o Carlos Heitor Cony, por ter participado de um protesto contra o regime militar, quando ocorreu, no Hotel Glória do Rio de Janeiro, a reunião dos países membros da Organização dos Estados Americanos. Protesto justo, pois o regulamento da OEA proibia a realização de conferências nos países não democráticos.
Perguntei a Drummond se ele se interessava pela política e se chegou a formular, neste sentido, algum protesto. Refletiu um pouco e respondeu:
-Em 1945 me aproximei do Partido Comunista, mas a rigor jamais quis ingressar num partido, por achar que pertencer a qualquer grêmio político nos tira a liberdade individual. Devido a este cerceamento, o Oswald de Andrade e a Rachel de Queiroz largaram o partido do Luís Carlos Prestes. Vou evocar para você um episódio curioso. No mês de abril daquele ano de 1945 – o ano da queda da ditadura do Getúlio – registrei num diário a minha conversa com o Prestes, no presídio onde ele estava, depois de ser condenado pelo Tribunal de Segurança Nacional.
-Conversa rápida?
-Não, comprida, mas só citarei os pontos da conversa que causaram o desmentido do Prestes.
-Desmentido?
-Sim, pois lhe enviei uma cópia datilografada do registro da nossa conversa. Ele a leu e irritou-se, soube por fonte idônea. Negou que houvesse classificado como “revolução” o movimento de outubro de 1930, responsável pela vitória do Getúlio. Garantiu nunca ter feito a seguinte previsão: Dutra, na presidência da República, seria pior do que Vargas, como este foi pior que o atrabiliário Artur Bernardes. Rotulou de “lamentável equívoco” o fato de eu o chamar de “católico”. Ele, Luís Carlos Prestes, enfatizou, não era da igreja do papa Pio XI. Testemunha de tal fato: o doutor Heráclito Sobral Pinto, seu advogado. E também me desmentiu porque divulguei esta sua opinião: revelava-se mais democrática a candidatura do brigadeiro Eduardo Gomes à presidência da República do que a do general Eurico Gaspar Dutra ao posto supremo.
Algo nervoso, Drummond fitou-me e sustentou:
-Fernando, assim como você está registrando tudo que digo num caderninho, fiz a mesma coisa no decorrer da conversa com o Prestes. Sou incapaz de adulterar a verdade. Fiquei surpreso e chateado, embora eu o respeite por sua vida de combates incessantes e de malogros honrosos. Aliás, dois amigos meus, Célia Neves e Oswaldo Alves, presenciaram o nosso encontro e após lerem a transcrição da conversa, acharam que a reproduzi de modo fiel.
Emiti este juízo:
-A retentiva do Prestes o traiu, ele ignora que não podemos confiar cegamente em nossa memória. Machado de Assis chamou-a de “rua da traição, cheia de becos escuros”.
Drummond concordou e fui avante:
-Agora declamarei para você uns versos sobre a memória, do poeta italiano Vincenzo Cardarelli, falecido em 1959.

Ergui-me da cadeira (poesia deve ser declamada de pé) e abri mais a voz:

“I ricordi, queste ombre troppo lunghe
del nostro breve corpo,
questo strescico di morte
Che noi lasciamo vivendo”.

A pedido de Drummond, traduzi os quatro versos:

“As lembranças, estas sombras tão longas
do nosso breve corpo,
este rastro da morte
que nós deixamos vivendo”.

Pensativo, com ar distante, e como se fosse o complemento da poesia do italiano, Drummond recitou:

“Itabira é apenas uma fotografia na parede,
Mas como dói!”.

Eu soltei esta frase:
-A sombra dos dias perdidos, ombra dei di perdutti, conforme a expressão de D’Annunzio, sempre nos entristece.
Tive a impressão, porém não posso afirmar, que uma pequenina, discreta lágrima, deslizou pelo rosto pálido e delicado de Drummond...
 

domingo, 14 de abril de 2019

Não há, na Bíblia, oposição ao casamento de padres


Afirmou o padre Diogo António Feijó, num discurso pronunciado no parlamento do Império, em 10 de outubro de 1827: não há na Bíblia uma só passagem, a favor do referido celibato. De fato ele estava dizendo a verdade. Nos versículos 1 e 2 do capítulo sétimo da Primeira Epístola aos Coríntios, por exemplo, encontramos estas palavras de São Paulo:
“Agora, quanto ás coisas que me escrevestes, penso ser bom que o homem se abstenha da mulher. Mas, dado o perigo da imoralidade, cada um tenha a sua própria mulher, e cada uma tenha o seu próprio marido.”
Mais adiante, nos versículos 8 e 9 do mesmo capítulo, o Apóstolo dos Gentios enfatiza:
"Contudo, aos solteiros e às viúvas digo que lhes é bom permanecerem assim, como eu. Mas, se não podem guardar a castidade, casem-se. É melhor casar do que se abrasar."
Quem é inimigo do celibato clerical, e deseja combatê-lo, tem aí no texto de São Paulo, encerrado na própria Bíblia, uma arma poderosa. Achará outro argumento eficaz, e bem eloqüente, nos versículos 6, 7, 8 e 9 do capítulo décimo do Evangelho de São Marcos. Estes versículos reproduzem as palavras de Cristo sobre o matrimônio, quando ele deu esta resposta aos fariseus:
“...no princípio da criação, Deus os fez homem e mulher. Por causa disso, deixará o homem o seu pai e a sua mãe, e passarão os dois a ser uma só carne. Portanto, já não são dois, mas uma só carne. Aquilo, pois, que Deus uniu, não o separe o homem.”
Jesus nunca disse: se o homem for um sacerdote e a mulher uma sacerdotisa, nenhum deles poderá ficar unido pelos laços do matrimônio. Se o Salvador houvesse firmado este dogma, São Paulo não aconselharia no versículo 9 do capitulo sétimo da Primeira Epístola aos Coríntios:
"É melhor casar do que se abrasar."
Como observou o padre Feijó no seu discurso, São Clemente de Alexandria apoiava a atitude de São Paulo. Evocando São Jerônimo, esse padre acentuou: outrora, no alvorecer do Cristianismo, “foram quase sempre preferidos para o sacerdócio os homens casados". Ele também se referiu a São Dionísio, bispo de Corinto, que não deixou o bispo de Gnosa impor a seus companheiros de religião “o pesado jugo do celibato."
Por que Feijó queria que os padres se casassem? É porque muitos padres de sua época, como ocorre nos dias atuais, eram hipócritas, tinham filhos, amantes, concubinas, e assumiam o ar de santos. Basta lembrar que um dos maiores escritores do Brasil, o romancista José de Alencar, havia sido gerado por um sacerdote, o padre José Martiniano Pereira de Alencar. Nascido no Crato, a "capital do Cariri", o pai do autor de “Iracema” recebeu a tonsura no Seminário de Olinda e governou a província do Ceará durante quatro anos, de 1834 a 1837.
O papa Pio II, como informou Feijó, era favorável ao casamento dos padres. Homem enérgico, sem mel na língua, Feijó descreveu o caso do cardeal que foi à Inglaterra, a fim de convencer os padres de um concílio a adotar o celibato. Pois bem, logo depois surpreenderam esse cardeal moralista nos braços de uma prostituta...