domingo, 14 de setembro de 2014

Jânio foi cassado por causa do seu beliscão numa bunda


Conforme narrei no meu livro Drummond e o elefante Geraldão, fui amigo íntimo do presidente Jânio Quadros. Ele morava perto do meu lar, numa casa térrea da rua 9 de Julho, número 880, em frente à Chácara Flora, no bairro Alto da Boa Vista, da cidade de São Paulo. Aos sábados, no período da manhã, Jânio costumava telefonar para mim. E muitas vezes ouvi esta súplica:

-Socorro, Fernandinho, socorro, estou morrendo!

Eu respondia:

-O senhor está doente, passando mal?

Palavras invariáveis do marido da dona Eloá:

-Estou morrendo de tédio, não aguento mais!

-Por que, presidente?

A explicação era dada num tom de angústia:

-Candidatos aos cargos de vereador, de deputado, e até de prefeito, invadem o meu tugúrio, o meu sacrossanto lar, na ânsia de serem fotografados junto de mim. Nem sequer os conheço! É gente de cabeça completamente vazia. Se fossem guilhotinados, como a Maria Antonieta, as suas cabeças subiriam aos ares como balões, perder-se-iam nas alturas!

Jânio então solicitava:

-Por favor, Fernandinho, almoce comigo. A Eloá vai servir o meu prato predileto, camarões com quiabo. Venha aqui e falaremos sobre arte, poesia, literatura, coisas elevadas. Comentaremos as parvoíces, os destrambelhos dos nossos políticos. Assim me sentirei melhor...

E eu, dezenas de vezes, ia almoçar com o Jânio. A conversa se estendia por horas a fio, só se encerrando ao anoitecer. Ele se abria comigo, não escondendo nada, nem mesmo pormenores de sua vida sexual, porém longe, é claro, da presença discreta da dona Eloá.

Quando a Adelaide Carraro (o sarcástico Agrippino Grieco a chamava de Adelaide Escarraro) lançou em 1963 o seu romance autobiográfico Eu e o governador, perguntei ao Jânio:

-Já leu este livro, presidente?

O mato-grossense não escondeu a verdade:

-Fiz fuki-fuki com a Adelaide, numa banheira, mas ela carecia de carne, era ossuda, e sou carnívoro como os tigres, os leões.

Rindo como um garoto travesso, prosseguiu:

-Sabe quem é o governador, no livro?

-Não.

-Sou eu.

Influenciado por esse depoimento de Jânio, coloquei no capítulo XIII do meu romance satírico O Grande líder, atualmente na sexta edição, a seguinte passagem, a fim de descrever um dos hábitos do personagem principal, Piranha da Fonseca Albuquerque:

“No palácio acolhia os secretários em cuecas, ou dentro da banheira, enquanto a impudica Joana D’Arc beijava as unhas dos pés do seu amado, sinuosas como roscas e orladas de preto.”

Certa vez eu e o Jânio estávamos à beira da piscina da sua casa, sentados em cadeiras de lona. De repente, bebendo uísque, ele soltou estas palavras:

-Perdi os meus direitos políticos, fui cassado em 1964, por causa do beliscão que dei numa bunda.

A princípio pensei que se tratava de brincadeira, mas ele continuou, de cara séria:

-Numa recepção, antes do Golpe de 1964, eu havia me excedido no uísque e belisquei a rechonchuda nádega esquerda da dona Yolanda Costa e Silva, esposa do comandante do II Exército, o general Artur da Costa e Silva. Ele tomou conhecimento desse episódio lamentável. Arrependo-me de ter agido de maneira tão soez, tão imprópria de um censor dos atos imorais.

-E como o Costa e Silva veio a saber disso?

-Creio que a própria dona Yolanda, mulher honrada, queixou-se a ele. Talvez ela tenha ficado com a bunda roxa, pois a belisquei fortemente.

Algo eufórico, sob o efeito dos vapores do uísque, o Messias do bairro de Vila Maria acrescentou:

-Fernandinho, sou um bundófilo, apaixono-me por nédios bumbuns femininos, gosto de comprimi-los, mas depois o remorso me atormenta. There is another man with’n me that’s angry with me.

Arregalei os olhos e ele me esclareceu:

-É uma frase do filósofo inglês Thomas Browne, no seu livro Religio Medici. Vou traduzi-la. “Dentro de mim há um outro homem que está contra mim.”

Perguntei como o vigoroso aperto na bunda da dona Yolanda gerou o processo causador da perda dos seus direitos políticos. Explicou:

-Logo após o Golpe de 1964, o general Humberto de Alencar Castelo Branco enviou-me um pedido. Queria que eu redigisse um documento, para incentivar os civis a apoiá-lo por sua investidura no cargo de presidente da República. Eu o atendi. O documento, assinado por mim, foi divulgado de forma ampla pelas emissoras de rádio e de televisão, pelos jornais do Brasil inteiro. Portanto, eu, Jânio Quadros, era visto com simpatia no círculo dos militares do Golpe, eles não me consideravam corrupto, ou subversivo, ou inimigo. O Castelo me admirava, pretendia convocar-me no futuro.

E aí, presidente?

-Aí, na primeira lista de cassações, o almirante Augusto Rademaker e o brigadeiro Francisco Assis Correia de Melo, integrantes do Comando Supremo do movimento revolucionário, não incluíram o meu nome nessa lista. Depois de examiná-la, o general Artur da Costa e Silva, ministro do Exército, lembrando-se do beliscão que apliquei na bunda da dona Yolanda, exigiu a inclusão do meu nome. Devido ao seu ódio, ao seu rancor, ao seu espírito vingativo, com base no Ato Institucional número 1 (AI-1), fui cassado no dia 10 de abril de 1964.

Teci este comentário:

-Presidente, pequenas causas, grandes efeitos. Evoco a afirmativa do filósofo Blaise Pascal: um diminuto grão de areia, un petit grain de sable, na bexiga de Olivier Cromwell, chefe da revolução inglesa de 1645 que destronou e executou o rei Carlos I, tirou a vida de Cromwell. Resultado, o grãozinho modifica a história da Inglaterra...

Jânio Quadros deduziu, após beber um gole de uísque:

-E querido amigo, o rumo da minha vida foi alterado por causa do meu beliscão no glúteo opulento, perturbador, da dona Yolanda.

Rimos a valer. Aliás, esse beliscão histórico é também descrito, sem as minucias aqui apresentadas, nas páginas 112 e 113 do livro As armadilhas do poder, do jornalista Gilberto Dimenstein, lançado em 1990 pela Summus Editorial e pela Folha de S.Paulo.

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Escritor e jornalista, Fernando Jorge é autor do livro Se não fosse o Brasil, jamais Barack Obama teria nascido, cuja 3ª edição foi lançada pela Editora Novo Século