sábado, 25 de julho de 2020

O BOM VINHO NOS LEVA A DEUS

Um piedoso jovem reprovava certo ancião que gostava de vinho:
-Meu senhor, domine esta fraqueza, do contrário jamais terá saúde.
-Ora - respondeu o velho - o bom vinho faz o bom sangue, o bom sangue produz o bom humor, o bom humor estimula os bons pensamentos, os bons pensamentos promovem as boas obras, e as boas obras conduzem o homem ao céu. Portanto, o bom vinho nos leva a Deus...
-Assim seja - acrescentou o moço - convertido, por seu turno, à seita dos apreciadores dessa edênica bebida.
O fato é que o vinho, tomado com moderação, possui indiscutíveis propriedades terapêuticas. Tonifica o sistema nervoso, aumentando as energias, restaura a vitalidade dos tecidos e preserva as qualidades nutritivas do sangue.
Terêncio Varrão dizia que o vinho tinto fortifica, o branco é diurético, o amarelo digestivo, o roxo refresca e o velho esquenta.
O duque Albert de Sachsen-Teschen era tão fraco na meninice que os médicos lhe prescreveram uma dose diária de vinho. Ele, até morrer, aos oitenta e quatro anos, nunca deixou de tomá-lo todos os dias.
Às vezes sinto inveja dos homens de outras épocas, pois conseguiram saborear estranhos vinhos. Que gosto devia ter o que era proporcionado pelas sumarentas uvas de Rodes! Virgílio o enaltece nas “Geórgicas, afirmando que podia servir para as libações dos deuses. No reinado do imperador Augusto havia um no qual misturavam alcatrão, cera, cinzas, amêndoas amargas, suco de pepinos selvagens, e folhas e rebentos de pinheiros! Imaginem como seria esquisito... O vinho de Falerno, segundo o Príncipe dos Poetas Latinos, tinha a cor do âmbar. E o de Cós, afirma a tradição, excitava o apetite, mas o de Creta cheirava a flores...
Degustar lentamente um vinho antigo constitui um dos prazeres superiores da existência. Há qualquer coisa de puro, de sagrado, imemorial, nesse ato. Milhares de homens ilustres, que passaram sonhando pela terra, tiveram o mesmo hábito. Talvez, bebendo vinho, nós estejamos ingerindo o sangue deles.
Convenhamos que o ser humano traz dentro de si uma fera prisioneira, prestes, ao mínimo incidente, a escapar de sua jaula. Bendito, por conseguinte, o sumo generoso extraído do fruto da vinha, quando adormece o animal bravio e desperta os nossos melhores sentimentos!
Conta-se que Ésquilo, na mocidade, repousando certa vez à sombra de uma parreira, viu Baco em sonhos, o deus do vinho, que lhe ordenou escrevesse tragédias em sua honra. Lenda ou verdade, o indubitável é que o cantor das velhas teogonias se conservou, pela vida afora, um sincero adepto daquele mancebo de formas esbeltas... O malicioso Luciano de Samosata o acusa francamente dessa paixão algo incontrolável, embora o honesto Plutarco diga que o vinho apenas contribuiu para inflamar o estro do poeta, arrancando sonoros versos do fundo de sua taça.
Anacreonte, o grego, Horácio, o latino, e Omar Khayyam, o persa, irmanaram-se no mesmo culto ao deus que espreme os cachos maduros e anda coroado de pâmpanos e de rosas.          Inspirador constante dos literatos, o rubicundo Baco tem movido a mão de muito escritor preguiçoso, friorento. Quanta frase bela, que encontramos nos livros, foi sussurrada por ele! Quantos poemas imortais, que nos embevecem, nasceram de um copo cheio de vinho capitoso, perfumado!

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Escritor e jornalista, Fernando Jorge é autor do livro “Eu amo os dois”, lançado pela Editora Novo Século.

domingo, 19 de julho de 2020

FAZENDO PIPI, ELA EXAGEROU!


Vítima de enfarte, Guimarães Rosa faleceu em 19 de novembro de 1967, três dias após ter tomado posse na Academia Brasileira de Letras. Posse que ele adiava, por temer a emoção causada pela cerimônia. Eu o conheci em 1964. Nesse ano o seuGrande sertão: veredas” alcançara três edições na Alemanha. E merecidamente, pois Rosa fez, numa obra ím­par, o regional tornar-se universal.
Durante o meu primeiro encontro com Guimarães Rosa, logo depois do golpe de 31 de março de 1964, ele confessou:
-Sabe do que eu tenho medo, Fernando Jorge? É da institucionalização de uma ditadura militar no Brasil.
Perguntei se ele conhecia as palavras lapidares de Rui Barbosa sobre o militarismo, que eu iria colocar no meu livro “Cale a boca, jornalista!” lançado pela Editora Vozes e agora já na quarta edição. O au­tor de “Corpo de baile” explicou:
-Detesto os regimes de arbítrio. Fui vítima de um deles. Quando o nosso país rompeu as relações diplomáticas com a Alemanha nazista, em 1942, eu era cônsul em Hamburgo. Os seguidores de Hitler me internaram em Baden-Baden e tive, como companheiros de prisão, o embaixador Cyro de Freitas Vale e o pintor pernambucano Cícero Dias.
-E o que aconteceu?
-Senti-me muito deprimido. Mais tarde a Gestapo me liber­tou, em troca de diplomatas alemães. E voltando à vaca fria, como são as palavras de Rui Barbosa sobre o militarismo?
Tirei do meu bolso um papel com estas afirmativas da “Águia de Haia”, que li em voz alta para o Guimarães Rosa:
“O militar é a força obediente. O militarismo, a força dominante. O militar é o soldado servindo. O militarismo, o soldado rei­nando. O militar é a espada sob a lei. O militarismo, a lei debaixo da espada.”
Guimarães Rosa vibrou ao ouvir o juízo de Rui:
-Que maravilha! Imbatível verdade! É isto mesmo! Esse baiano tinha um imenso talento verbal e tais palavras são pedaços de latejante carne viva.
Em seguida, Rosa quis saber:
-Meu amigo, diga-me se eu, nos meus livros, exagerei no emprego de palavras novas, de neologismos.
Respondi:
-O senhor não exagerou tanto como a velha da ladeira.
Ele abriu mais os seus olhos de míope, bem curiosos atrás das grossas lentes:
-Velha da ladeira?
-Sim, aquela velha toda vestida de preto, magrinha, feinha, de pernas e braços fininhos. Ela exagerou, o senhor não.
Mal acabei de dizer isto, ergui-me do sofá e me pus a recitar:

                                    "Uma velha muito velha
                                    Foi mijar numa ladeira,
                                    Encheu rios e riachos,
                                    Inundou uma ribeira!
                                    Três engenhos pararam,
                                   Um frade se afogou,
                                  E o diabo desta velha
                                  Ainda diz que não mijou!”

            A gargalhada rabelaisiana do Guimarães Rosa, depois de ouvir estes versos populares, continua a ressoar nos meus ouvidos...
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Escritor e jornalista, Fernando Jorge é autor do livro Eu amo os dois, lançado pela Editora Novo Século.

sábado, 11 de julho de 2020

UM COICE DE QUADRUPIDE



Diogo Mainardi, na sua coluna da revista “Veja” (edição de 15-12-2004), garantiu que os paulistas, na Revolução Constitucionalista de 1932, agiram como fujões, como covardes. Não sou paulista, mas fiquei indignado ao ler esta infâmia do Mainardi. Ele, para mim, é um profissional da calúnia, do insulto louco e nojento.
São Paulo, em 1932, porfiou bravamente, a epopeia que esculpiu, nas páginas da nossa História, é imperecível, é tão soberba como a do grego Leônidas e dos seus trezentos espartanos no desfiladeiro das Termópilas, as “Portas Quentes” onde esses heróis tentaram deter o imenso exército de Xerxes, o opulento e enfatuado soberano persa.
 Pode-se afirmar: São Paulo jamais vacilou ou esmoreceu na luta tra­vada contra a Ditadura. Daí o motivo de não aceitarmos este julgamento de Afonso de Carvalho, no seu livro “Capacetes de Aço”:
“Mais tarde, quando a técnica militar fizer o estudo sereno e imparcial da Revolução Paulista, há de reconhecer, por certo, que o erro principal de São Paulo, com imediato e decisivo fracasso nas operações militares, foi este: esperar. São Paulo ficou todo o tempo esperando por alguma coisa, na antevisão de um messianismo redentor. Espera pelo Rio Grande - e o general Waldomiro Lima atravessa Itararé e parte fundo até Buri. Espera por Minas - e as tropas da 4ª DI tomam Guaxupé, Casa Branca, São José do Rio Pardo e, prestes, batem às portas de Cam­pinas. Espera por um novo golpe pacificador na capital da República. Espera pelo sr. Artur Bernardes. Espera pelo sr. Borges de Medeiros. Espera pelos navios que devem trazer armamento da Europa. Espera pelos aviões, que devem vir da Argentina e do Chile. Espera pelo Anti-­Cristo. Nunca se esperou tanto no Brasil!”
Estas palavras são injustas. O erro fundamental dos paulistas foi o de não terem, logo no início, avançado em direção ao Rio de Janeiro, pois a investida dos rebeldes, na frente Norte, seria decisiva para alcançar a vitória. É verdade que os constitucionalistas aguardavam o apoio de Mi­nas Gerais, de Mato Grosso e do Rio de Janeiro, sem falar das adesões de outros estados. Mas depois que as esperanças se desvaneceram, e isto não tardou a acontecer, São Paulo lutou com ardor e tenacidade. Fez um esforço prodigioso, admirável sob qualquer aspecto: fabricou bombas, morteiros, canhões pesados, granadas de mão, lança-chamas, máscaras contra gases, diversas espécies de armas e munições. Todo o povo se er­gueu, num magnífico gesto de desassombro: velhos, jovens, mulheres, crian­ças, operários, industriais, damas da alta sociedade. São Paulo movi­mentou-se, pelejou. A sua mocidade, ardente e idealista, sacrificou-se em Cunha, Cachoeira, Túnel, Mogi, Eleutério, Lorena, Silveiras, Rio das Al­mas, no Vale do Paraíba, nos ásperos grotões e contrafortes da Manti­queira. São Paulo não esperou, agiu. São Paulo não se conservou imó­vel como um faquir, mas viril, másculo, dinâmico, esplêndido, resoluto, à semelhança daqueles guerreiros gauleses que, embora de modo desvanta­joso, enfrentaram as invictas e compactas legiões romanas.
Ao São Paulo de 1932, ao São Paulo da Revolução Constitucionalista, aplica-se aquelas palavras que Rui Barbosa proferiu em 1919, quando respondeu às observações de um jornalista de “O imparcial”:
- “Porque não se luta só para vencer, luta-se também para perder. E, às vezes, é mais nobre perder que vencer.”

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Escritor e jornalista, Fernando Jorge é autor do livro As lutas, a glória e o martírio de Santos Dumont, lançado pela HaperCollins.