domingo, 19 de abril de 2015

Fernando, vamos ser fuzilados?

No ano de 1965 apareceu o romance Falência das elites, assinado pela Adelaide Carraro, mas na verdade escrito pelo jornalista Hélio Siqueira, dos Diários Associados do Assis Chateaubriand. Eu redigi e assinei o texto das orelhas do livro, que narra o drama de um médico negro, visto com nojo, repulsa, num círculo de pessoas brancas da “elite”. A rigor, a obra é uma denúncia contra o preconceito racial.
O jornal O Globo, do Rio de Janeiro, informou na edição do dia 4 de abril de 1965, que por ordem do Ministério da Justiça, agentes do Serviço de Ordem Política e Social apreenderam o romance Falência das elites, considerado subversivo. Esta notícia reproduziu a minha opinião sobre o livro. Ao lê-la, disse a mim mesmo: vou ser processado pelos militares da Linha Dura, os “gorilas”.
Assim aconteceu. Fui intimado a ir depor numa sala de um edifício do Pátio do Colégio, da capital paulista. Dois soldados de capacetes brancos, munidos de metralhadoras, levaram-me num jipe até lá. Ao entrar na sala, escoltado pelos dois soldados como se eu fosse um prisioneiro de guerra, ouvi a seguinte pergunta do editor do livro, o judeu búlgaro Eli Behar, de pé junto à porta, pálido como quem se acha prestes a desmaiar:
-Fernando, vamos ser fuzilados?
Eu quis saber:
-Por quê?
Respondeu, cada vez mais pálido:
-Porque na Bulgária os réus iguais a nós, em casos desse tipo, são logo fuzilados.
Sorrindo, tentei acalmá-lo:
-Espero que não. O Brasil é diferente da Bulgária...
Cercado por soldados fortemente armados, sentei-me diante de um coronel do Exército, em cujo peito reluziam as suas condecorações. Ao lado dele, um escrivão e o promotor Dragamiroff, da Justiça Militar. O coronel, homem alto, imponente, de faces rubicundas, pronunciou esta frase:
-Fernando Jorge, o senhor, que escreveu um livro famoso sobre o Aleijadinho, faz de modo claro o jogo dos comunistas.
-Eu? Não estou entendendo.
-O romance Falência das elites, elogiado pelo senhor, garante que há preconceito de raça no Brasil. Tal preconceito não existe em nosso país. Somos a maior democracia racial do mundo, como declarou o seu colega Gilberto Freyre. Os que sustentam que há aqui aversão aos negros são os marxistas-leninistas, a fim de forçar o povo a se revoltar contra nós, os militares, as autoridades constituídas, por fecharmos os olhos diante desse preconceito.
Fiquei estupefato ao ouvir estas palavras, mas reagi:
-Senhor coronel, me desculpe, no Brasil existe esse preconceito.
-Não há, se existe quero que o senhor prove – replicou de cara brava.
-Eu não tenho as provas aqui, mas é um fato de conhecimento geral.
-Repito – disse o coronel, irritado – não há esse preconceito, é um plano diabólico dos marxistas-leninistas para jogar o povo contra nós, os militares, as autoridades constituídas. Prove a existência desse preconceito, eu exijo!
Os olhos do militar pareciam lançar fagulhas. Respondi, esforçando-me em me manter tranquilo:
-Senhor coronel, permita que eu me concentre, para me lembrar de uma prova e apresentá-la.
Ele respondeu, com voz enérgica:
-Autorizo o senhor a pensar.
Autorizado a pensar (que beleza!), eu me concentrei, buscando a tal prova. Junto de mim, branquíssimo, quase a desmaiar, o editor Eli Behar me olhava aflito, como alguém prestes a morrer sob uma rajada de metralhadora. De súbito, a minha boa memória me ajudou:
-Senhor coronel, se o senhor pedir a qualquer desses soldados para ir apanhar a prova, poderei mostrar como realmente existe o preconceito de raça no Brasil.
E apontei para um soldado com cara de buldogue e corpão de orangotango.
-Não – replicou o coronel – não precisa ser este soldado. Chamarei o meu ajudante-de-ordens.
Tocou uma campainha e logo apareceu um militar baixinho, que lhe fez continência. Solene, empertigado à maneira de feroz agente da Gestapo na Alemanha nazista, o coronel me encarou, determinando:
-Ordeno-lhe que diga o que quer.
-Peça ao seu ajudante-de-ordens, por favor, que vá às sedes dos principais jornais de São Paulo e traga exemplares dessas folhas do dia 10 deste mês.
O coronel deu a ordem, o auxiliar lhe fez outra vez continência e afastou-se. Suspenso o interrogatório, pensei: se a minha memória falhou, estarei frito.
Depois de quase duas horas, o ajudante-de-ordens surgiu com um pacote. Pedindo licença, colocou o embrulho em cima da mesa do coronel. Este, sempre pomposo, dirigiu-se a mim:
-Aí estão os jornais. Ordeno, agora, o senhor prove que existe realmente preconceito racial no Brasil.
Abri o pacote, o meu coração batia apressado, e examinei o primeiro jornal. Era o Diário da Noite. Rápido, achei nele a notícia sobre um casal de advogados, marido e mulher, impedidos de se hospedarem no Hotel Esplanada, devido ao fato de serem negros. Então, por causa disso, o casal resolveu processar os donos do hotel, evocando a Lei Afonso Arinos, que proíbe o preconceito racial. Dobrei o jornal e o exibi:
-Aqui está a prova, senhor coronel.
Ele ficou surpreso, mas não quis se dar por vencido:
-Trata-se de um episódio isolado. Continuo a afirmar, não existe preconceito racial no Brasil. Apresente-me outra prova.
Solicitei, com voz suave:
-O senhor permite que eu me concentre?
Vacilou um pouco, mas consentiu:
-Autorizo o senhor a pensar.
Autorizado pela segunda vez a pensar (que beleza!), concentrei-me e falei, após dois minutos:
-Senhor coronel, não conheço nenhum almirante da nossa gloriosa Marinha de Barroso e Tamandaré que é preto retinto. É mais uma prova.
Soltei estas palavras de cabeça baixa, sem fitar o seu rosto, e ia dizer, senhor coronel, também não conheço nenhum general do nosso glorioso Exército de Caxias e Osório que é negro como o Pelé. Ia dizer, mas desisti, silenciei, pois quando ergui a cabeça ele me olhava com a cara de um criminoso sádico, bebedor de sangue.
No fim do interrogatório, após eu assinar um documento, o coronel rugiu:
-Levante-se. Ordeno que o senhor se retire.
Aliviado, fui embora. Ficou lá, tremebundo, quase a se derreter como manteiga aquecida, o Eli Behar, editor do “livro subversivo” Falência das elites, da Adelaide Carraro.
Jô Soares ouviu tudo isto no seu programa, ao me entrevistar pela primeira vez (entrevistou-me duas vezes). Depoimento prestado por mim, no meu lar, à Comissão Nacional da Verdade, estando presente a senhora Maria Luci Buff Migliori, de Brasília, consultora dessa comissão.
Aliás, o preconceito racial continua a existir no Brasil. Há pouco tempo o professor de economia Manoel Luiz Malaguti, da Universidade Federal do Espírito Santo, confessou aos seus alunos que se tivesse de “escolher entre um médico branco e um negro, escolheria o branco”. O Ministério Público Federal instaurou, contra esse racista, procedimento investigativo criminal (O Globo, 6-11-2014).