sábado, 29 de janeiro de 2011

A DEFICIÊNCIA FÍSICA NÃO ELIMINA O VALOR

Recebi uma carta de um jovem que é deficiente físico, na qual ele declara:
"Nasci quase sem pernas e sem braços, com estas duas partes do meu corpo atrofiadas. Às vezes me entristeço, porque nem sempre é fácil, para mim, aceitar tal situação. Talvez o senhor possa animar-me, numa de suas crônicas. Ficarei grato."
Prezado leitor, atendendo ao seu pedido, vou evocar neste bate-papo uma das mais extraordinárias vidas do século XIX. É a de Arthur MacMurrough Kavanagh, nascido no dia 25 de março de 1831, terceiro filho de lady Harriet Margaret Le Poer Trench, segunda esposa de Thomas Kavanagh, parlamentar inglês. Quando Arthur saiu do ventre da mãe, uma empregada exclamou, ao vê-lo:
-Coitadinho! Deus o levará e assim será melhor para todos!
O menino tinha apenas dois cotos de alguns centímetros, no lugar onde deveriam estar os braços, e além disso as pernas lhe faltavam por completo. Mas Deus não quis levá-lo. Iria viver 58 anos, de maneira intensa.
Arthur cresceu. Ele possuía um sorriso franco, límpidos olhos azuis, ombros largos e uma testa espaçosa, indicadora de alta inteligência. Perseverante, aprendeu a escrever usando a caneta com os dentes. E a sua letra era boa. Logo se tornou o mais audacioso cavaleiro dos condados do interior da Irlanda. Como fazia isto? Seguro por correias a uma sela especial, e após empurrar para a frente os ombros largos, ele agarrava as rédeas com os dois cotos de braços.
Mostrou ser um ótimo atirador, de pontaria infalível. Eis o seu método: prendia a arma debaixo do coto do braço esquerdo e com o direito puxava o gatilho. Também foi um pescador habilíssimo. Atreveu-se até a pescar nas águas traiçoeiras das imediações do Círculo Ártico.
Apesar de não ter mãos, Arthur MacMurrough Kavanagh sabia desenhar muito bem e era um pintor de talento.
Em 1848, ele decidiu empreender uma longa viagem com o irmão mais velho, Thomas, e com o seu professor, o reverendo David Wood. Seria uma excursão quase sempre a cavalo, da Suécia até a Índia. E Arthur partiu. Atravessou a Finlândia, foi até a Rússia, desceu pelo Volga, navegou pelo Mar Cáspio, chegou à Pérsia e depois a Bombaim. Durante três anos o destemido homenzinho sem braços e sem pernas sofreu toda a espécie de privações: enfrentou períodos de fome, de doenças, de invernos duríssimos e de calores bárbaros.
No Teerã participou de caçadas ao lado do príncipe persa Malichos Mirza, filho do Xá Fat-Ali. E Arthur, ao ficar doente em 1850, passou a sua convalescença no magnífico harém desse príncipe. Imaginem como foi deliciosa a sua recuperação...
O dinheiro do homem sem pernas e sem braços acabou, mas ele não esmoreceu. Conseguiu arrumar um emprego em Aurugumbad, na Companhia das Índias Orientais. Sabem qual era a sua tarefa? Levar mensagens urgentes, a cavalo!
Contemplando a vida de Arthur, vemos como Goethe não errou ao escrever os seguintes versos na parte nona do poema “Hermann und Dorothea”:

“Aquele que se apoia numa vontade firme,
forja o mundo a seu gosto”

(“Aber wer fest auf dem Sinne beharrt,
Der bildet die Welt Sich” )


Baixinho, de pernas curtas (pernicurto), Napoleão era um gigante, do ponto de vista militar. Ele e o britânico Arthur MacMurrough Kavanagh são a prova de que a deficiência física desaparece, quando quem a carrega tem coragem, tenacidade, personalidade, inteligência, em suma, indiscutível valor próprio.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

UM RATO MERECE MAIS ESTIMA QUE CERTOS HOMENS

A senhorita Stella Thompson, de trinta e sete anos, que mora em Havant, Inglaterra, resolveu não se mudar do local onde vive, embora tenha herdado do progenitor uma vasta e moderna residência. O motivo é que ela não se conforma em abandonar um rato pelo qual se afeiçoou, chamado “Will-o’-the-Wild”.
-Se eu deixar esta casa – pergunta a mulher – quem tratará da alimentação de Will? É um ratinho muito tímido e não sabe defender a própria subsistência.
A senhorita Thompson, conforme declarou, já teve em certa ocasião nada menos de vinte e oito ratos soltos no seu apartamento.
-É bastante bonita e confortável a casa do meu pai, no Sussex – disse ela – porém não quero deixar Will sozinho. Levá-lo comigo seria uma solução arriscada, pois ele poderia morrer por estranhar o ambiente.
Esta inglesa sentimental, ao contrário de tantas criaturas do seu sexo, nutre uma profunda simpatia por esses ágeis roedores, que nunca foram, através dos séculos, animais benquistos.
Quase todos os irracionais são símbolos para o homem. A abelha representa a indústria; o galo, a vigilância; a formiga, o trabalho; o boi, a paciência; o leão, a força; a coruja, o estudo; a pomba, a paz; o cão, a fidelidade; a ovelha, a mansuetude... E o rato? Este é símbolo da cupidez e da podridão.
Os hindus veneram a vaca. No estado de Caxemira, aquele que tirar a vida de uma, é castigado com sete anos de cadeia. Em Madagascar, recebe pena de morte quem mata um crocodilo. O tigre, esse belo quadrúpede carniceiro, é adorado em Bengala e nas ilhas de Sonda. Até o urubu, o negro e feio urubu, tem os seus admiradores, porquanto no Daomé os nativos o respeitam como um deus. Mas... e o rato, quem o enaltece, lhe presta homenagens? Se não me engano, o seu único panegirista, na época contemporânea, foi Walt Disney, o criador dos desenhos animados de Mickey Mouse...
Dos outros animais o homem aprendeu inúmeras coisas valiosas. A aranha ensinou-lhe a arte de tecer. Alguns pássaros, como o joão-de-barro, deram exímias lições de engenharia. A raposa mostrou o que é a astúcia; a lebre, o que é a velocidade; a mula, o que é a obstinação... E assim por diante. O rato apenas ensinou o homem a ser guloso e rapinante.
O sexo frágil sempre demonstrou por ele uma tremenda antipatia. A senhorita Stella Thompson é uma exceção. Adora esses tratantes, estremece de ternura ao vê-los. Acha que são lindos, mimosos, encantadores. Nem lhe passa pelo cérebro que os patifezinhos transmitem a peste bubônica e a disenteria bacilar.
O amor é cego, dizem com razão. Eu compreendo, no entanto, porque essa inglesa excêntrica quer bem aos ratos. Solteirona, quase atingindo os quarenta, tem um coração ardente, repleto de meiguice. Como não pode extravasar todo o carinho que ele encerra junto a um esposo e a um filho, volta-se para os tais animalejos.
No fim das contas, aqui entre nós, amigo leitor, um rato merece mais estima que certos homens.
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Escritor e jornalista, Fernando Jorge é autor do livro Se não fosse o Brasil, jamais Barack Obama teria nascido, lançado pela Editora Novo Século

domingo, 16 de janeiro de 2011

Professor Leodegário


Homenagem de Paulo Schmidt

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

A macaca de Milão e o meu macaco louco

Conta o escritor italiano Matteo Bandello (1485-1561) que existia no castelo Sforzesco de Milão, edifício do século XV, na época do duque Ludovico Sforza, uma macaca muito grande, muito alegre e muito brincalhona. Ela não fazia mal a ninguém. Andava à vontade dentro do castelo e pelas ruas daquela cidade gloriosa, situada entre a planície do Pó e os Alpes.
Uma casa, das várias frequentadas por ela, pertencia a velha senhora de San Giovanni Sul Muro. Dois jovens, seus filhos, brincavam sempre com o inofensivo animal, que gostava de ir ali, pois nessa casa era melhor tratado e tinha farta alimentação. Mas à noite a macaca retornava ao castelo.
Devido a sua idade avançada, a velha senhora adoeceu, ficou de cama. Mesmo assim, recebia a macaca e dava-lhe doces.
Um dia a enferma morreu. Lavaram o seu corpo e puseram uma touca na sua cabeça. Depois lhe enfiaram um vestido.
A macaca viu tudo. Celebrou-se, diante do caixão, o ofício fúnebre. Em seguida transportaram a morta para outro lugar.
Sozinha no quarto da extinta, a macaca quis imitar o ritual das mulheres que a vestiram. Pôs a touca na cabeça e a roupa no corpo peludo. Então se deitou na cama, cobriu-se, e até parecia a velha senhora em repouso...
Quando as criadas entraram no quarto, a fim de arrumá-lo, tiveram a forte impressão de que a morta havia voltado. Cheias de terror, desceram pela escada aos gritos. A velha senhora, estendida na cama, saíra do túmulo!
Os parentes e os dois rapazes, apavorados, de cabelos em pé, fugiram do aposento. Imediatamente mandaram chamar um padre. Este, munido de água benta e de um crucifixo, passou a orar, exortando os filhos da morta a não terem medo, porque a mãe deles possuía uma alma boa.
O padre benzeu toda a casa. Acompanhado pelo sacristão, foi até o quarto. Ao olhar a macaca de touca e deitada na cama, pensou que era a morta. Sentiu um pouco de medo, porém quis mostrar coragem e começou a derramar água benta em cima da macaca. Esta, vendo o religioso sacudir o aspersório, guinchava, batia os dentes.
Sob as unhas aguçadas do medo pânico, ele fugiu, deixando tombar no chão o aspersório, após o sacristão se escafeder, despencar-se pela escada abaixo e cair de pernas para o ar. Ao tropeçar nele, o padre também caiu.
Os filhos da morta e outras pessoas apareceram. Ansiosos, perguntaram o que tinha acontecido. Tonto, pálido, a tremer e quase sem poder falar, o padre respondeu:
-Ai de mim, meus filhos, que eu vi o demônio na forma da senhora vossa mãe!
Logo, entretanto, a macaca pula fora da cama. Ela tira alguns doces das caixas da morta e repleta de energia, de agilidade, saltita pela escada, rápida como um camundongo. Exibia na cabeça a touca da velha senhora e no corpo as roupas que ela usava. Apesar de se parecer com a defunta, os dois irmãos a reconheceram. Irresistível espetáculo cômico! E as gargalhadas estrugiram.
Piruetando, dançando, produzindo singulares macaquices, mil trejeitos, a macaca escapuliu, sem se deixar agarrar. Debaixo das risadas de todos, correu em desabalada carreira para o castelo Sforzesco...
Evoquei esta história, narrada por Matteo Bandello, porque se Milão, a bela cidade italiana onde se admira uma soberba catedral gótica, divertia-se com a tal macaca, eu também tenho um macaco que me diverte bastante. O meu macaco, embora eu ainda esteja vivo, me imita sem parar. Trata-se de um caso curioso, digno de análise.
Primeiro explico que o meu macaco é um ser humano, não integra a família dos símios. Ele costuma visitar as livrarias, como eu, e um livreiro me informou:
-Seu Fernando, há um fulano que copia tudo que o senhor faz.
-Quem é?
-É um sujeito magro como o senhor. Parece seu irmão gêmeo. Tem cara parecida com a sua, cabelos brancos iguais aos seus. Ele me disse que se casou com uma mulher pequena por sua causa.
-Eu não acredito.
-Foi o que me garantiu. Certa vez ele viu o senhor com a sua esposa aqui na livraria, e por ela ser baixa, ele também resolveu se casar com uma mulher pequena.
-Meu Deus, este homem deve ser louco!
-Eu também acho, seu Fernando. Como o senhor gosta de usar gravatas azuis, com bolinhas brancas, ele o imita. E sabe de uma coisa, esse maníaco me pediu isto: guardar para ele qualquer exemplar dos livros que o senhor compra.
-Incrível! Que loucura!
-Na semana passada o senhor levou um dicionário francês de História. Eu tive de separar o mesmo dicionário para ele. Há três dias o senhor comprou cinco exemplares do seu próprio livro sobre Obama, pois conforme me disse, não tem mais nenhum exemplar para dar como presente a qualquer amigo. Pois saiba, o maníaco comprou também cinco exemplares do seu livro Se não fosse o Brasil, jamais Barack Obama teria nascido.
E o meu amigo livreiro acrescentou:
-O dono de um sebo aqui de São Paulo precisava de dinheiro. Mentindo, ele disse ao maníaco que o senhor havia comprado oitenta livros raros. Esse cara acreditou e pediu a relação das oitenta obras. Levou todas elas!
Não resta dúvida, se a cidade italiana de Milão, capital da Lombardia, teve uma grande e esperta macaca, eu, o escritor Fernando Jorge, tenho na cidade brasileira de São Paulo um fiel macaco. Só que o meu macaco é louco, precisa urgentemente de ser internado num manicômio...