domingo, 27 de março de 2011

ATCHIM! VOCÊ ESPIRROU?

Informa Heródoto, o “Pai da História”: na manhã da célebre batalha de Maratona, travada no ano 490 antes de Cristo, o jovem Hípias soltou um espirro tão forte, tão retumbante, que este o obrigou a expelir um dente. Aquilo foi considerado como um sinal de morte. De fato, Hipias morreu no decorrer da famosa batalha e todos os gregos viram no fim do jovem um justo castigo, uma severa punição, por ter empunhado a sua espada contra o seu próprio país.
Mas nem sempre, na Grécia, o espirro estrondoso era contemplado como um péssimo sinal, o anúncio de uma calamidade.
Penélope, certa vez, estava orando pelo regresso de Ulisses, o seu esposo, que viajara para combater na guerra de Tróia. Aí, nesse momento, a sua casa estremeceu, abalada por espirro fortíssimo de Telêmaco, o filho de ambos. Pois bem, a partir desse instante, Penélope alimentou a certeza de que Ulisses voltaria ao lar, e apesar da demora, das notícias falsas sobre o seu falecimento, ela nunca perdeu a fé, a esperança.
Conforme esclarece Teócrito, o poeta grego criador do gênero bucólico ou pastoril, o espirro procedente da narina direita era um bom aviso e proporcionava um raro prazer...
Os romanos fitavam o espirro como sinal de azar. Portanto, se qualquer cidadão espirrasse, eles pediam a proteção de Júpiter, o deus iroso e temperamental das nuvens, dos raios, dos trovões, das tempestades.
A Itália, no ano de 591, foi assolada por uma epidemia devastadora. Essa peste oferecia curiosa particularidade: os doentes espirravam, antes de morrer. Querendo impedir o avanço do mal, o papa Gregório Magno ordenou a celebração de missas, em todas as igrejas. Então, nessas ocasiões, quando alguém espirrava, o sacerdote punha a mão na cabeça da pessoa e diziz em latim:
- Dominus tecum! (“Deus te ajude!”)
Tais palavras são usadas por nós até hoje, diante de pessoas que espirram.
Um caipira chamado Bertolino, segundo narra Cornélio Pires, ficou impressionado com esta expressão, ouvida por ele em Goiás e no centro de Minas. E decidiu, após retê-la na memória:
-Vô levá esse “Tómenostéco” pro sertão... Quanto mais se viaja, mais se aprende!
Ao chegar a Caiapó, ele ouviu o espirro de um cumpadre:
-Atchim!
Bertolino não vacilou:
-“Tómenostéco”, compadre!
O outro quis saber:
-Uai Que negócio de “Tómenostéco” é esse?
O caipira respondeu:
-Compadre... Eu não sei o que é... Mais é muito bom pra espirro...
Uma quadrinha popular brasileira, maldosa e injusta:

“Se a mulher espirrasse
Cada vez que nos ilude,
Seria o mundo ocupado
Só em dizer: Deus te ajude!”

sábado, 19 de março de 2011

Só ama de verdade quem enxerga além da aparência

Recebi uma carta, na qual a autora fez esta confissão:
“Tenho 25 anos, sou bonita, instruída, solteira, moderna, porém me desculpe a franqueza, só dou valor às coisas novas. Sei que o senhor não é jovem, mas o admiro por que nos seus textos sempre encontro bons conselhos e grande conhecimento da vida.”
A moça declara, nessa carta, estar amando um homem de 60 anos. E mostra-se confusa, pois contra a sua vontade, a sua natureza, agora o seu coração palpita por um sexagenário:
“Talvez eu tenha enlouquecido. Amar um velho, eu que sempre detestei as coisas velhas! Mas é verdade, eu o amo com muita ternura, há cinco anos. O tempo me provou isto. Diga-me, escritor Fernando Jorge, eu sou uma anormal, uma degenerada? Devo procurar um psiquiatra?”.
Prezada desconhecida, acalme-se. Jano, deus da mitologia romana, era representado com uma cabeça de duas faces contrapostas, uma voltada para frente e outra para trás. Pois bem, o deus Amor tem mais de mil faces. Não existe um só tipo de amor. As pessoas podem amar uma alma ou apenas um rosto, amar movidas pela atração física ou pela atração espiritual. Se é por causa da alma é o amor de Carolina pelo franzino e epilético Machado de Assis, se é por causa do físico, é o amor da grande atriz Sarah Bernhardt pelo belo ator Jacques Damala...
Resiste a tudo, o amor verdadeiro, nem a velhice e a morte conseguem destruí-lo. A grega Eós, isto é, a Aurora, irmã de Hélios, o Sol, e de Selene, a Lua, apaixonou-se pelo maravilhoso Titono e pediu a Zeus a graça de conceder a imortalidade ao amado. Mas ela se esqueceu de solicitar a esse rei do Olimpo, para Titono, a juventude eterna. Pobre Titono, os seus cabelos se embranqueceram, enrugou-se-lhe o rosto. Eós tentou rejuvenescer o companheiro, alimentando-o com a ambrósia, o manjar dos deuses. Desgostosa, inconformada, a núncia do Sol encerrou Titono num recanto sombrio, onde ele perdeu a aparência humana e ficou do tamanho de uma cigarra. Então Eós o transformou nesse inseto.
Minha jovem que ama um senhor de 60 anos: se o amor da Aurora dos “dedos cor-de-rosa”, como Homero a chamou, fosse espiritual e não físico, ela aceitaria a decrepitude de Titono. Amaria até a sua velhice, os seus cabelos brancos, as suas mãos enrugadas, porque o amor verdadeiro transforma a feiúra em poesia e beleza.
Só ama de verdade quem enxerga além da aparência. E a propósito disso, reproduzo aqui o soneto “Feia”, do poeta português Júlio Dantas:

“Não te amei. E por quê? Porque não há em ti
A graça que perturba, o sorriso que enleia:
Porque eu sou cego, filha, e porque tu és feia,
Porque te olhei, amor, e porque não te vi.

Foste minha e - vê lá! - nunca te conheci.
A tua alma, tão bela e tão nobre - ignorei-a.
Quis beleza, frescura - e construi na areia:
Só comecei a amar-te, hoje, que te perdi.

Amor espiritual, amor sem esperança,
Amor que não deseja e, por isso, não cansa,
Amor contrito e puro, arrependido e triste...

Hoje estou convencido, ó minha gloriosa:
A paixão sem beleza é a mais perigosa;
O amor por uma feia é o maior que existe.”

Júlio Dantas acertou. Quem ama uma pessoa sem se importar com a sua aparência, ama mais, bem mais.
Concluo este bate-papo dizendo à minha prezada desconhecida: se você, com os seus 25 anos, ama de fato esse homem de 60 anos, você não é uma anormal e nem deve procurar um psiquiatra. Devem procurar os psiquiatras, entretanto, todos aqueles que por preconceito se escandalizam diante dos amores verdadeiros.
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Escritor e jornalista, Fernando Jorge é autor do livro Se não fosse o Brasil, jamais Barack Obama teria nascido, lançado pela Editora Novo Século

quinta-feira, 17 de março de 2011

QUEM VÊ CARA NÃO VÊ CORAÇÃO

Julgo o povo, inúmeras vezes, mais sábio que os maiores sábios. Sua filosofia nasce da soma dos mais variados conhecimentos. Na leitura de um provérbio ou de um dito sentencioso colaboraram multidões tragadas pela voragem do tempo. Quanta profundeza deparamos num rifão! Uma frase popular não é o produto espontâneo de um repente feliz. Custou amarguras, decepções, sendo argamassada com diversas e sofridas experiências. Daí o cunho verdadeiro desses adágios que correm mundo, de autores desconhecidos, mas tão expressivos, tão lapidares, como os melhores aforismos de Pascal, La Rochefoucauld e Anatole France.
Assevera o povo, com instintiva sabedoria, que “quem vê cara não vê coração.” De fato nos enganamos, quando pretendemos avaliar o nosso semelhante pela sua fisionomia. As aparências iludem, escondem a realidade. A natureza quis brincar com o homem, oferecendo-lhe aspectos contraditórios, perturbadores, demonstrando, assim, as deficiências de nossa acuidade.
Se os sentidos estão sujeitos a tantas falhas, que dizer, então, do nosso cérebro?
Todo indivíduo, por mais tolerante, tem sempre encaixadas na cabeça, de forma renitente, algumas ideias convencionais, originadas de uma excessiva padronização da vida coletiva. São essas ideias preconcebidas, milhares e milhares de vezes divulgadas, que prejudicam a nossa visão particular das coisas e a capacidade de penetração psicológica. Por exemplo: em geral achamos que todo fulano com rosto assustador deve ser perigoso. Um tipo mal-encarado, de cicatriz na face, pode nos arrepiar o cabelo. Por qual motivo? É que o cinema e os romances policiais costumam mostrar os bandidos desta maneira...
Existe gente linda, de corpo sedutor, que é ruim como o Capeta, e gente feia, horrível mesmo, que é boa como a alma protetora dos anjos.
Sócrates, segundo Platão, possuía nariz retorcido, lábios grossos, olhos esbugalhados, pescoço bovino. Sua fealdade desaparecia perante a beleza moral que lhe ornava o espírito.
As mulheres Saras-Djinges, do centro da África, deformam com enormes sacrifícios os seus lábios, que ficam gigantescos. Isto, para elas, é a suprema beleza.
Os nativos das ilhas Sandwich, conforme o relato de diversos viajantes, acham que a mulher, quanto mais gorda, mais bonita se torna...
Cleópatra, na opinião de arqueólogos da NationalGeographicSociety, tinha uma boca demasiado pequena e um nariz demasiado grande, não se justificando, por conseguinte, a paixão de Marco Antônio por ela, já que a esposa deste, Otávia, era muito mais bela.
Do exposto, a que conclusão chegamos? Se a formosura é aquilo que nos agrada, então a fealdade, inúmeras ocasiões, é sublime, encantadora. E se a feiúra é, antes de tudo, aquilo que provoca repulsa, má impressão, quanta criatura de belo semblante é desprezível, horrorosa!

sábado, 5 de março de 2011

Estes não viveram!

Não viveram os que ficaram corroídos pela inveja do sucesso de alguém e se encheram de despeito.
Não viveram os que sempre entupiram os seus corações com o mais monstruoso dos ódios irracionais.
Não viveram os que nunca sentiram a presença silenciosa e emocionante da saudade.
Não viveram os que não se solidarizaram com os sofredores e os consolaram.
Não viveram os que procuraram corromper a pureza, a inocência, as virtudes, esmagando beija-flores, lírios, camélias e rosas.
Não viveram os que não acariciaram uma criança, não a beijaram, não brincaram com ela, ou lhe negaram um sorriso, uma palavra de ternura.
Não viveram os que, em nome da verdade, destruíram estupidamente as ilusões das almas ingênuas e sonhadoras.
Não viveram os que aplaudiram com cinismo o erro, o vício, a injustiça, o roubo, o crime, a venalidade, a corrupção, a prostituição.
Não viveram os que não amaram a cultura, a música, a poesia, a obra de arte, a beleza.
Não viveram os incapazes de ter pena de um infeliz, de um desgraçado, e que transformaram os seus corações em barras de gelo.
Não viveram os egocêntricos, que se preocuparam apenas com o seu bem-estar e fizeram de suas vidas uma auto-idolatria, sem ligar para mais ninguém.
Não viveram os jovens que zombaram dos velhos, e os desrespeitaram com a impaciência, a injúria, os cretinos atos de grosseria.
Não viveram os mesquinhos, que se mostraram pequeninos no modo de agir em relação aos nossos semelhantes e jamais tiveram um gesto de nobreza, de altruísmo, de desprendimento.
Não viveram os que só queriam “relaxar e gozar” e que acharam que o principal é encher o estômago, dormir bem, defecar bem e ter voraz e insaciável apetite sexual.
Não viveram os que só se preocuparam com os bens materiais, em detrimento dos bens espirituais, e que converteram os seus corações em metálicas caixas registradoras, cujo som é assim: dinheiro, dinheiro, dinheiro, dinheiro, dinheiro, dinheiro, dinheiro, dinheiro, dinheiro.
Não viveram os que, praticando uma ação vil, traíram a confiança de quem neles acreditava e assim emporcalharam as suas almas, cobrindo-as com fedorentos mantos de excremento.
Não viveram os falsos, os hipócritas, que Cristo comparou a “sepulcros brancos, caiados por fora, mas cheios de ossos de mortos e de podridão por dentro”.
Não viveram os que foram racistas, preconceituosos, e que por orgulho tolo, por se sentirem superiores, humilharam e maltrataram pessoas.
Não viveram os que não sentiram a dor indescritível de perder, levada pela morte, uma pessoa querida, pois como disse o poeta Francisco Otaviano, em versos nos quais a verdade resplandece:
Quem passou pela
vida em branca
nuvem e em plácido
repouso adormeceu,
quem não sentiu
o frio da desgraça,
quem passou pela
vida e não sofreu,
foi espectro de
homem, não foi
homem, só passou
pela vida, não viveu.
Meus amigos, viver é emocionar-se, no bom sentido, é sentir que temos alma, amor, sonhos, esperanças, coração, lágrimas, bondade, piedade, saudade. Quem não possui tudo isto não está vivo, é como um campo desprovido de flores, árvores, pássaros, sombras aconchegantes, só habitado por vermes, ossadas, escorpiões, mortíferas cobras geradas na região do horror e do espanto.