domingo, 25 de janeiro de 2015

Chamei de cagão, na frente dele, o governador de São Paulo

Antes de contar porque chamei de cagão o governador de São Paulo, na frente dele, preciso dizer uma coisa. O que vou narrar aqui foi gravado pela Comissão Nacional da Verdade, com a presença da consultora Maria Luci Buff Migliori, de Brasília. A comissão esteve no meu lar por este motivo: fui processado quatro vezes, na época do regime militar, como “escritor e jornalista, perigoso, subversivo.”
Passo a expor a história do xingamento. A Editora Mc-Graw-Hill do Brasil, cuja sede é em Nova York, no ano de 1976 incumbiu-me de escrever um livro sobre o governo Geisel, de caráter documental. Então produzi, em dois meses, a obra As diretrizes governamentais do presidente Ernesto Geisel – Subsídios e documentos para a história do Brasil Contemporâneo. O brasilianista Thomas Skidmore, professor de História da América Latina na Universidade de Wisconsin, recomendou a leitura desse meu trabalho no capítulo VI do seu livro He politics of military rule in Brazil 1969 - 85.
Mesmo contra a minha vontade, a Mc-Graw-Hill resolveu enviar uma cópia do original para o ministro Golbery do Couto e Silva, chefe do gabinete civil do presidente Ernesto Geisel. Sete dias depois os americanos me chamaram com urgência à editora. Lá, na presença do gerente Jan Rais, ouvi estas palavras de um gringo louro, cujo rosto largo, redondo, corado, parecia uma rósea bunda feminina bem nutrida:
-Sanhorr Farrnandu, ministru Gulbirri telafunou di Brrázilia i nus acunsilhô a non publicar seo livrru.
Devolveram-me o original e veloz, sem perda de tempo, procurei um editor que o aceitou, apesar de ter lhe contado tudo, a proibição do general Golbery, etc. O livro logo saiu. Eu era, na época, chefe da Divisão Técnica de Biblioteca da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo.
Certo dia, uma semana após o lançamento da obra, encerrado o expediente da minha seção, achava-me sozinho na biblioteca da Assembleia. Eram oito horas da noite. De súbito entraram no recinto seis homens mal encarados. Vi que carregavam armas, revolveres, fuzis. Aproximaram-se de mim, acompanhados pelo investigador Wilson de Barros Consani, da Secretaria da Assembleia. Um desses fulanos declarou:
-Somos policiais da Secretaria da Segurança e recebemos ordens para levar o senhor preso até o DOPS.
Surpreso, indaguei:
-Por qual motivo?
A resposta veio firme, incisiva:
-É porque o senhor escreveu um livro.
-Ué, agora escrever livro é crime?
-O senhor escreveu um livro sobre o presidente Geisel e a obra foi considerada perigosa, subversiva. E além disso, por causa do senhor, o governador Paulo Egydio não dormiu a noite inteira.
-Por minha causa?
-É, por sua causa, pois o governador soube que aparece no seu livro. Ele não quer que o presidente Geisel pense que é amigo de um escritor perigoso, subversivo.
-Incrível, não acredito! – respondi – O senhor está falando sério, o governador ficou sem dormir à noite inteira, por minha causa?
-Sim, repito, não dormiu a noite inteira por sua causa. A esposa dele está preocupada. Abatido, nervoso, às sete horas da manhã o governador chamou o coronel Erasmo Dias, secretário da Segurança, e pediu para ele tomar enérgicas providências. O coronel telefonou para o Palácio da Alvorada, em Brasília, e obteve do ministro Golbery a autorização de mandar prender o senhor, de levá-lo até o DOPS.
Reagi, de maneira rápida:
-Ah, São Paulo não merece isto! São Paulo, juro, não merece isto!
Os policiais arregalaram os olhos, não entenderam. Continuei:
-São Paulo, o heróico estado dos corajosos bandeirantes Borba Gato e Raposo Tavares, dos bravos soldados da Revolução Constitucionalista de 1932, não merece isto, não merece isto!
-Não merece o quê?
-Não merece estar sendo dirigido por um governador medroso, cagão!
O chefe dos policiais aconselhou:
-Acalme-se, não se revolte, estamos cumprindo ordens. É melhor o senhor no acompanhar.
Tranquilo repliquei, embora com o meu esbraseado sangue árabe fervendo nas veias:
-Só sairei daqui se os senhores me algemarem e me arrastarem, porém advirto, a situação agora é outra. Lembrem-se da morte do Herzog e do operário Manuel Filho. Não ficarei muito tempo preso. Assim que sair do DOPS, vou processar o governador Paulo Egydio e o secretário Erasmo Dias, porque estou totalmente inocente, Consequência, o governador vai ficar com fama de cagão, de palhaço, de sujeito apavorado, ridículo.
Vendo a minha reação, o investigador Wilson de Barros Consani (ele está vivo, é testemunha) pegou o telefone e ligou para o doutor Romeu Tuma, diretor do DOPS, a fim de explicar o que estava acontecendo. Em seguida o Tuma quis falar comigo. Calmo, esclareci:
-Doutor Tuma, recuso-me a ir preso até o DOPS. Não cometi nenhum crime. Sou inocente. Se eu for, terá de ser à força, terei de ser algemado e arrastado. E reafirmo, após sair do DOPS, vou processar o governado Paulo Egydio e o secretário Erasmo Dias, devido a este ato de arbítrio, de violência injustificável. O governador vai fazer o papel de palhaço, de cagão, e ficará desmoralizado.
O diretor do DOPS respondeu:
-Não precisará agir assim, doutor Fernando. Pedirei ao coronel Erasmo Dias para revogar a ordem da sua prisão. Só lhe peço o obséquio de conceder o seu depoimento aí mesmo, na Assembleia. Vou mandar um escrivão e duas testemunhas. Concorda?
Aceitei. E permaneci na Biblioteca da Assembleia até às cinco horas da madrugada, respondendo a dezenas de perguntas cretinas, registradas por um escrivão nissei.
O meu livro sobre o governo Geisel logo foi publicado. Enviei um exemplar para o ministro Golbery, que o havia proibido, e ele cinicamente agradeceu, classificando a obra de “honesta”, de “valiosíssimo documentário”. Roguei dez pragas contra esse general...
Um ano depois o editor da quarta edição do meu livro sobre o Aleijadinho, um português, apresentou-me numa Bienal do Livro, no stand da sua editora, a DIFEL, ao ex-governador Paulo Egydio Martins:
-Governador, tenho a honra de lhe apresentar o escritor Fernando Jorge.
Olhei a cara do Paulo Egydio, um homem alto, encorpado, e soltei estas palavras:
-Recuso-me a cumprimentá-lo. O senhor é um cagão, pois ficou uma noite inteira sem dormir, com medo que o presidente Geisel pensasse que é meu amigo. São Paulo não mereceu ter sido governado por um borrador de cuecas.
Sou meio louco, pronunciei estas palavras com voz bem alta, para mais de cinquenta pessoas no amplo stand da DIFEL ouvirem. O editor e o ex-governador ficaram brancos como neve, pareciam que iam desmaiar. Sentindo-me vingado, eu me afastei triunfante, de cabeça erguida, a transbordar de alegria.
Indiscutível, o estadista e filósofo inglês Francis Bacon (1561-1626) proclamou a verdade ao afirmar no capítulo IV dos seus Essays: “a vingança é uma forma de justiça selvagem.” Revenge is a kind of wild justice.



domingo, 18 de janeiro de 2015

AS LÁGRIMAS DE JUSCELINO KUBITSCHEK


Num dos meus encontros, em 1975, com Juscelino Kubitschek no Banco Denasa, do qual ele era presidente do Conselho de Administração (o banco era dos seus genros), Juscelino me contou que teve uma crise de choro em Belo Horizonte no Palácio da Liberdade, quando o doutor João Pi­nheiro Neto, seu oficial de gabinete (Juscelino era o governador de Minas), começou a lhe dar informações, na manhã do dia 24 de agosto de 1954, sobre o suicídio de Getúlio Vargas. Eu ousei dizer ao criador de Brasília, naque­la ocasião:

-Presidente, além das suas lágrimas derramadas pela morte do Getúlio, eu sei que o senhor teve outra crise de choro.

Surpreso, abrindo mais os olhos, ele pediu:

-Então me conte como eu tive esta outra crise. Quero ver se você é um escritor muito bem informado.

Comecei a narrar:

-No mês de junho de 1964, devido a uma iniciativa do general Costa e Silva, o seu mandato de senador foi cassado. E os militares, estimulados pelo Costa, também suspenderam os direitos políticos do senhor por dez anos. Não é verdade?

Juscelino concordou:

- Pura verdade. E confesso, decidi sair do Brasil por causa disso. Viajei para a Europa no dia 14 de junho de 1964. Mas prossiga.

Os olhos do ex-presidente, que às vezes forneciam a impres­são de ser de um chinês, revelavam uma viva curiosidade. Eu continuei:

-Centenas de pessoas o acompanharam na sua despedida. Um gru­po de homens ergueu o senhor no ar e o carregou sob palmas, aclamações, até a escada do avião. Repito, eram centenas de pessoas que gritavam “vivas”, e o senhor, emocionado, agitava um lenço branco.

Juscelino confirmou:

verdade, eu me emocionei, senti o amor de povo, o seu

carinho por mim.

-Dentro do avião - prossegui - o senhor não pôde mais se con­trolar e caiu num choro forte. Levou o seu lenço branco ao rosto e o encharcou com as suas lágrimas.

Cheio de espanto, Juscelino Kubitschek admitiu:

-Também é verdade, mas como veio a saber desses fatos?

-Presidente, quem me contou esses fatos foi o meu amigo Silveira Bueno, catedrático de filologia portuguesa da Universidade de São Paulo. Ele já se encontrava naquele avião, quando o senhor entrou. Viu o seu embarque, de uma das janelas do aparelho, e o seu choro, pela fresta de uma cortina grossa. O lugar em que o senhor se acomodou era isolado, no fundo do avião, mas o professor Silveira Bueno estava sentado junto da cortina...

O ex-presidente fez o seguinte comentário:

- Se você escrever a minha biografia, decerto evocará este episódio. Chorei muito, lá dentro do avião, porque eu vi, ao embarcar para o exílio, como o povo brasileiro me amava.

E Juscelino também não impediu o jorro das lágrimas em outra ocasião, pois no ano de 1973, graças a iniciativa do empresário João Abujamra,o Clube Nacional da capital paulista o homenageou com um almoço.

rios oradores enalteceram o estadista nascido na cidade mineira de Dia­mantina. Mas ao ouvir o discurso do meu pai, o grande orador Salomão Jor­ge, que descreveu a sua infância de menino pobre, descalço, filho de uma heróica e modesta professora, Juscelino chorou copiosamente. Ali, naquele momento, todos puderam ouvir até os seus soluços. João Abujamra, leal ami­go do “Peixe Vivo", é testemunha desse fato.

            Um pensamento de Franz Grillpazer (1791-1872), poeta e dramaturgo alemão:

As lágrimas são o sagrado direito da dor.”

(“Die Thränen sind dês Schmerzes helig Recht!”)

domingo, 11 de janeiro de 2015

O ASSALTO DO GOVERNO LADRÃO


Sujeira, porcaria, fez o presidente Collor, antes do confisco da poupança decretado por ele, como revela esta manchete da edição do dia 22 de agosto de 1992 do “Jornal do Brasil”:

          “Collor e PC Farias escaparam do bloqueio dos cruzados em 1990”.

          E eis a manchete, também de primeira página, na mesma data, da “Folha de S.Paulo”:

          Dinheiro de Collor foi sacado na véspera do confisco da poupança.

          No dia 13 de março de 1990, véspera do feriado bancário, a senhora Ana Acioli, secretária do presidente, retirou da conta deste, no BMC de Brasília, uma quantia que hoje corresponde a 443 milhões de reais. Segundo o depoimento da secretária à CPI, “nunca saiu um centavo daquele banco, sem o prévio conhecimento de Collor”.

          Portanto, como salientou o “Jornal do Brasil”, o presidente, poucas horas antes do bloqueio do dinheiro, “tratou de salvar a própria pele”. Aqui podemos evocar a velha frase de um político desonesto, porém “moralista” para efeitos externos:

          -Façam o que eu digo, mas não façam o que eu faço.

          Já existe esta outra prova: os assessores da ex-ministra Zélia Cardoso de Mello receberam 320 mil dólares do Esquema PC. Uma empreiteira, de modo suspeito, fez a reforma do seu apartamento, reforma que custaria agora, corrigidos pela variação do câmbio livre, 351 milhões de reais! E Zélia era “uma mulher pobre, sem recursos”.

          Quando houve o sequestro do suado dinheiro do povo, um grupo de jornalistas foi entrevistar a ex-ministra. Sentados em várias cadeiras, aguardavam as suas declarações, quando ouviram as gargalhadas que ela soltava através da porta semi-aberta, junto dos seus assessores:

          -Ha, ha, ha, ha! Este zé-povinho estava pensando que eu era mole! Ha, ha, ha, ha, ha, ha! Eu não sou mole, não! Ha, ha, ha, ha! Este zé-povinho está muito mal acostumado, só quer consumir! Mas comigo vai ser duro, pois eu sou a Margareth Tatcher, a dama de ferro da economia brasileira! Ha, ha, ha, ha! E essa gente pode desmaiar e até morrer lá nas filas dos bancos, das agências das caixas-econômicas, porque comigo é assim, não tem conversa, não! Ha, ha, ha, ha, ha, ha!

          Oito jornalistas ouviram estas palavras e estas gargalhadas da Zélia, atrás da porta. Tenho no meu arquivo o depoimento deles, narrando isto, com as assinaturas reconhecidas em tabelionatos.

          Logo após o confisco do dinheiro, determinado pelo governo Collor, o senhor Lourival Ricardo Drewnick, de sessenta e um anos, sofreu um derrame cerebral. Ele morava em Santos, num apartamento da Praia Grande, e tinha 750 mil cruzeiros numa caderneta de poupança. Quis retirar esse dinheiro bloqueado, com o objetivo de tratar da saúde, mas o Banco Central não permitiu. Drewnick se sentia humilhado, profundamente deprimido, por ter de pedir empréstimos a parentes e amigos. Técnico em sistemas de refrigeração, o sexagenário recebia, na qualidade de aposentado, cerca de 60 mil cruzeiros mensais, dinheiro insuficiente para cobrir as despesas do seu tratamento médico. Repleto de angústia, de desespero, ele resolveu suicidar-se no Dia do Aposentado, como forma de protesto. Disparou um tiro na cabeça e deixou este bilhete:

          “Deus me perdoe, mas não aguento mais tanta dor e ver a miséria chegando. Maldito Collor, ladrão de velhos e aposentados. Dedico a ele a minha morte”.

          (Consultar a notícia “Poupança presa leva aposentado ao suicídio”, publicada na edição do dia 21 de janeiro de 1991 do jornal “O Estado de S. Paulo”).

          Ao decretar o confisco da poupança, ao trair a sua palavra, Collor apunhalou o povo pelas costas. Naquela época eu comentei:

          -Estamos diante de uma canalhice monumental, de uma prova sólida, incontestável, de absoluta falta de caráter.

          O assalto do governo Collor, desse governo ladrão, gerou uma crise gravíssima no comércio e na indústria. Esta deixou de produzir e o comércio de vender, pois o consumo caiu verticalmente. Ninguém tinha dinheiro. Consequência: veio a crise social, a recessão, o desemprego.