quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Liza Minelli quis suicidar-se, por causa do Edu Lobo


Liza Minelli
Fui amigo íntimo de Ênio Silveira, diretor da editora Civilização Brasileira, e troquei com ele dezenas de cartas, que o escritor Gabriel Kwak, secretário geral da UBE, pretende divulgar num livro. Aliás, devido a esse relacionamento, tive de depor na Polícia Federal, pois o meu querido amigo, na época do regime militar, era secretário do Partido Comunista. Um delegado alto, forte, corpudo, perguntou a mim:

-O senhor sabia que Ênio Silveira é comunista?

Respondi:

-Sabia.

-E sobre o que conversavam?

-Conversávamos sempre, antes do Golpe de 1964, sobre livros, literatura, arte, Castro Alves, Raul Pompéia, Machado de Assis, Capistrano de Abreu, Gilberto Freyre, etc, etc. E não pertenço a nenhum partido, mas sou um democrata, um amante da liberdade, um defensor do direito de cada cidadão pensar como quiser, desde que se oponha a regimes de natureza nazi-fascista.

De cara brava, o homenzarrão afirmou:

-Fica bem claro, o senhor é um inocente útil, fecha os olhos diante das ações subversivas dos marxistas-leninistas.

Amigo do Ênio, um funcionário da Polícia Federal descreveu para ele como foi o interrogatório a que fui submetido. Rindo, o Ênio comentou:

-Meu caro “inocente útil”, se a coisa continuar assim, logo até o Carlos Lacerda vai ter que depor...

Eu indaguei:

-Você foi amigo do Carlos?

-Fui, mas nos separamos. O seu direitismo não combinava com o meu esquerdismo. Entretanto, depois de cair em desgraça junto dos milicos golpistas, que apoiara, um dia ele telefonou para mim e disse: Ênio, quero reatar a nossa amizade, sinto saudades das nossas conversas, você aceita? Condescendi, passamos novamente a nos encontrar.

Esta minha conversa com o Ênio ocorreu na sede de sua editora, uma casa velha da rua Muniz Barreto, número 715/721, do bairro carioca de Botafogo. O meu amigo tirou de uma gaveta um retrato em bom tamanho do Carlos Lacerda, no qual vi carinhosa dedicatória. Informou-me:

-Penso que ele me deu esta foto por gratidão.

-Como assim?

-Ajudei-o a sair de uma enrascada. Combinamos um almoço num restaurante do Leblon. Eu cheguei primeiro e quando o Carlos apareceu, veio na minha direção com passo incerto, vacilante, sinuoso. A distância era de uns vinte metros, porém notei, pelo seu andar e pela sua fisionomia, que estava alcoolizado. No meio da sala do restaurante havia uma grande e arredondada mesa de frios, de saladas. Pois bem, o Carlos se achava tão bêbado que desabou em cima dela, derrubando os pratos, os talheres, as verduras, as beterrabas, os pepinos, os tomates, os ovos cozidos. Parecia o estouro de um raio.

-E o que você fez?

-Levantei-me depressa, e aturdido, com a ajuda de vários garçons, procurei erguê-lo, mas foi difícil. O seu corpo pesava como alto monte de chumbo. E Fernando, que luta para o pôr de pé e o enfiar no automóvel! Travei em seguida outra peleja, a fim de impedir a divulgação desse desmoronamento nos jornais, nas revistas, nas emissoras de rádio e de televisão. Agora você pode compreender porque ele me enviou o seu retrato com a dedicatória carinhosa...

Contemplando meu olhar surpreso, o Ênio prosseguiu:

-Além do Carlos Lacerda, outra pessoa bêbada me deixou atrapalhado.

-Quem?

-A Liza Minelli.

Respondi, sacando o meu caderninho do bolso, com o objetivo de registrar as suas palavras:

-Explique-me como isto aconteceu.

Tranquilo, o Ênio Silveira começou a narrar:

-Após chegar aqui, no Rio de Janeiro, a Liza Minelli gostava de conversar comigo. Eu a convidei para escrever as suas memórias, a fim de serem lançadas simultaneamente pela minha editora e por uma editora americana. Achou interessante a proposta, mas logo desistiu de apoiar o projeto, pois se apaixonou pelo compositor Edu Lobo. Ele se tornou a sua ideia fixa, não quis saber de mais nada. Liza o chamava de wolf in sheepis skin (“lobo com pele de ovelha”).

-Paixão voraz, Ênio?

-Paixão lelé da cuca, Fernando, paixão de doida internada num manicômio. Essa americana gemia, soluçava de paixão. Desejando acalmá-la, apagar as labaredas daquele fogo vulcânico da estrela do filme Cabaré, de 1972, levei-a até a cidade litorânea de Cabo Frio, onde eu veraneava numa casa em cima de um penhasco. E disse a Liza: o Edu Lobo é casado com uma bela moça, chamada Wanda Sá, e a ama muito.

-A sua reação?

-Soltou, ou melhor, rosnou estas palavras, i don’t care a hang (“pouco me importa”). E garantiu, the course of true love never did run smooth (“o caminho do amor verdadeiro nunca foi fácil”).

-Ouvindo isto, você ainda tentou apagar o incêndio talvez vaginal do corpo histérico da Liza Minelli?

-Tentei. No afã de distraí-la, de desviar o seu maníaco pensamento da figurinha esquelética do Edu Lobo, fui com ela aos locais turísticos de Cabo Frio, às salinas, à lagoa de Araruama, ao forte de São Mateus, à ponte Feliciano Sodré, à igreja de Santa Maria dos Anjos, etc, etc. e não adiantou nada, a gringa só falava do Edu Lobo, volta e meia dizia, love at first sight (“foi amor à primeira vista”). Mas eu não parei de insistir, Liza, o Edu é casado, adora a sua esposa, e a americana replicava, all’s fair in love and war (“no amor e na guerra, tudo vale”).

-Puxa, que paixão, Ênio! Essa mulher sofria de um teimoso desarranjo mental, em vez de ser vítima de um passageiro desarranjo intestinal!

-É, Fernando, o seu cérebro ficou avariado. Uma noite, lá na casa do penhasco, após comer bastante feijão preto no almoço, ela me pediu para lhe dar bebida (give me to drink, some drink). E exigiu uma “bebida intoxicante” (an intoxicating drink). Peguei a garrafa do uísque Black and White e enchi com ele a metade de um copo. Liza protestou, queria “beber como um tubarão” (to drink like a shark), de um só trago (to drink off in one gulp). Esvaziou a garrafa em menos de uma hora e agarrando outra, do uísque Old Smuggler, não cessou de o entornar na garganta roxa, de veias intumescidas.

Ênio Silveira fez uma pausa e não tardou a continuar:

-Meu leal amigo Fernando Jorge, agora vem a parte mais dramática. A Liza Minelli pulou da cadeira e disse, com voz rouca, que “morria de tristeza”, que “todas as suas esperanças se desfizeram” (die of broken heart, all our hopes fell to the ground). Sonhava em “ter apenas uma palavra” do Edu Lobo, (a word with you). E jurou estar “a morrer de amor” (to die of love), porém disposta “a encarar a morte de maneira firme” (to look death stead fastly in the face). Aproximou-se da porta de entrada da casa e tonta, assumindo um ar trágico, bêbada como uma cachaceira, implorou a presença da morte para a “libertar da sua vida desgraçada” (a death, come and put an end to my wretched existence).

-Meu Deus! E ai, Ênio?

-Aí, Fernando, ela abriu a porta de entrada da casa e citou este provérbio americano: one pair of heels is often worth two pairs of hands (“um par de calcanhares, às vezes, vale por dois pares de mãos”). Provérbio que corresponde à nossa expressão “pernas pra que te quero?” Nervoso, agitado, compreendi imediatamente, Liza ia suicidar-se, jogando o corpo nos rochedos. Lembrei-me, num átimo, do suicídio em 1969 de sua mãe, Judy Garland, encontrada morta no banheiro do seu apartamento londrino, depois de ter ingerido uma cavalar quantidade de vodca e de pílulas para dormir. Ligeiro, segurei a Liza Minelli pela cintura, impedindo-a de se atirar no penhasco. Embora bem pesada, entupida de álcool, consegui arrastar o seu corpo e colocá-la numa cama, onde se afundou, roncou e peidou, durante quase um dia inteiro.

E o Ênio Silveira concluiu:

-Repito, Fernando, o Carlos Lacerda e a Liza Minelli foram as duas pessoas no pileque que mais me deixaram atrapalhado...

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Escritor e jornalista, Fernando Jorge é autor de Drummond e o elefante Geraldão, que acaba de ser lançado pela Editora Novo Século e cuja primeira edição já está quase esgotada.

 

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