quarta-feira, 17 de agosto de 2011

VIVA A ALEGRIA!

Numa época em que tanta gente morre em consequência de desastres, epidemias, guerras e mil outras calamidades, digam-me se não é uma ventura morrer de alegria, simplesmente. Pois isto aconteceu, conforme os jornais noticiaram, à senhora Becker, de Essen, na Alemanha. Em 1939, ela contava sessenta anos e era mãe de onze filhos, sendo também bisavó. Nesta idade sofreu um ataque de catarata, ficando cega. Os médicos, temendo complicações, não quiseram operá-Ia. Há pouco tempo, com setenta e oito anos, a senhora Becker submeteu-se a uma operação cirúrgica, coroada de êxito. A alegria de conseguir ver, por fim, seus vinte e nove netos, dezessete bisnetos e nove trinetos, foi tal, tão excessiva, que ela não resistiu: morreu de emoção.
Se todos os seres pudessem se despedir da vida assim, no auge da felicidade! Morrer sorrindo, eufórico, deve ser uma volúpia. Um belo epílogo reconcilia o homem com a existência, por mais ingrata e adversa que esta tenha sido. O lamentável é que Santo Agostinho sentenciou:
"Acabamos sempre humilhados pela vida".
Eis uma dolorosa verdade. Ao percorrermos as biografias dos homens célebres, o nosso coração se sente confrangido. Com uma e outra rara exceção, quase todos sucumbiram tragicamente: Cícero degolado, Menandro afogado no Pireu, Eurípides despedaçado por uma matilha de cães, Sócrates envenenado, Abimeleque triturado pela mó de um moinho, Sansão esmagado sob as ruínas de um templo, Pirro caiu numa rua de Argos, vítima de pesada telha que lhe foi atirada à cabeça por uma mulher do povo.
Santo Deus! - exclamará o leitor - então não existiu ninguém importante no mundo que morresse em paz, num clima benigno? É claro que houve. Mas são tão poucos! Uma das mortes mais poéticas que conhecemos é a do pintor Rafael. Esse artista possuía uma fisionomia seráfica. Nele tudo era suave: o olhar, o perfil, a voz, os gestos. Foi, como Fra Angélico, um santo da arte. Viveu só para ela, cercado por um séquito de admiradores e discípulos. Expirou mansamente no seu atelier, no meio dos seus quadros, dos inúmeros amigos, enquanto a tarde, tranquila como o rosto de suas madonas, enlanguescia numa auréola de matizes opalescentes.
Talvez se o homem não temesse tanto a morte, a vida seria mais calma, aprazível. Esta certeza absoluta do nosso perecimento físico nos deixa sempre inquietos, sobressaltados. Estamos atentos, todos os minutos, na defesa da nossa carcaça. "O receio da morte é pior que a própria morte", afirmou Públio Ciro nas Sentenças.
De Thou, no cadafalso, contemplando o cadáver palpitante do seu companheiro Cinq-Mars, e percebendo que o carrasco se preparava para executá-Io, voltou-se para a multidão e disse:
-Sou homem, temo a morte, e o corpo desse amigo, estendido a meus pés, me perturba. Peço, por caridade, que me ocultem os olhos. Qual dos senhores poderia ceder-me um lenço?
A senhora Becker não foi a única criatura que pôde morrer de alegria. Quilon, um dos sete sábios da Grécia, tombou trespassado de contentamento ao beijar seu filho, um dos vencedores dos Jogos Olímpicos. Anacreonte expirou num festim, ébrio, soltando gargalhadas. O poeta Filemon pereceu de ataque de riso, ao ver que um burrico, aproximando-se de uma mesa, devorava os figos bons e atirava fora os podres. Aretino também sucumbiu de tanto rir. Sófocles, em virtude do sucesso alcançado por uma de suas peças. Natale Constantine, célebre cantor italiano, quando soube que Verdi havia escrito uma parte especial para ele, na ópera Atila. Calchas, adivinho grego, ao comentar, exultante, com alguns amigos, o fato de se ter vencido o dia da sua morte, por ele mesmo anunciada num dos seus vaticínios.
Morrer de alegria é bem melhor do que passar deste mundo para o outro sem ser afogado, como o Duque de Clarença, num tonel de malvasia, ou sem ser, como Brunilde, filha de Atanagildo, rei dos visigodos, arrastada pela cauda de um cavalo xucro.
É preferível extinguir-se feliz, satisfeito, pois é um privilégio assaz raro, que não tiveram homens do porte de um Dante, falecido no desterro, de um Lavoisier, cuja cabeça foi decepada pela guilhotina. É bem melhor, em vez de chorar, de se desesperar, crer na sobrevivência da alma, ser superior, sorrir da morte. Dirão: é muito fácil dar conselhos... Mas afirmo que não é difícil também segui-Ios. O cínico Alphonse Karr dizia que emitir conselhos distrai bastante aquele que os distribui e não obriga à nada aquele que os recebe. Em todo o caso, ouvindo as recomendações de vozes sobrenaturais, Joana d' Arc salvou a França e o estouvado D. Pedro I, não fazendo ouvidos de mercador às sensatas palavras proferidas pelo seu pai, proclamou a independência do Brasil... As nossas exortações de resignação cristã ante o irremediável não terão eficácia se o leitor tiver a mentalidade do arqueólogo italiano Giacomo Boni, o qual explicava desta maneira o segredo de suas vitórias nas escavações que fazia:
-É muito simples. Recolho os informes do monumento ou do objeto procurado. E onde os tratados dizem que não deve existir coisa alguma, mando cavar e sempre encontro qualquer coisa...
Se tudo vai mal, se nada nos entremostra uma perspectiva risonha, se até os amigos, nos momentos infaustos, afastam-se do nosso convívio, não fiquemos desesperados nem lamuriosos. O Altíssimo, para nos consolar, ofereceu-nos o riso, esse broquel de ouro que protege a nossa alma dos vilipêndios da adversidade.
O ríspido Licurgo levantou na Lacedemonia uma estátua ao riso, tão necessário, afirmava, para mitigar o trabalho, as amarguras da vida, a dureza das regras que ele prescrevia.
Saibamos viver bem humorados, pois assim, no instante fatal, não será difícil contemplar a incomplacente ceifeira de olhos frios.
Instrui a Bíblia, nos Provérbios, que o "coração alegre constitui bom remédio, mas um espírito abatido seca os ossos."
Exaltemos, nesta época insípida e utilitarista, a Alegria, essa jucunda fada Viviana que transmuda, com o leve toque da sua varinha de cristal, cravejada de safiras, a capciosa víbora do pessimismo em cambiante colar de turmalinas, o lodo viscoso e infecto do Aqueronte em ametistas de tons rubentes, nas quais Merlin, o Mago, reteve cativas algumas gotas nevadas caídas do seio de uma sílfide.
Quando tudo nos parecer desfavorável, nas horas longas de tédio e desalento, quando estivermos despojados de todas fantasias da Ilusão, sem um vintém de Fé, sedentos de Ideal, voltemos nosso olhar fosco para ela, a rósea e radiante Alegria, deusa ornada pelas flores vermelhas e cetinosas do amaranto, imperatriz da azul Bizâncio dos meus sonhos, cujas almenaras, ostentando cúpulas douradas de faiança, são braços suplicantes de pedra, erguendo, às amplidões estelares, minhas ansiosas e esperançosas preces!
Quis me expressar assim, com esta linguagem ultra-poética. E se estou sendo ridículo, anacrônico, paciência...

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