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domingo, 30 de agosto de 2020

RAIMUNDO MAGALHÃES JÚNIOR: AGENTE DE UMA DITADURA DE MODELO FASCISTA

Na seção “Mistifório”, de O trem (maio de 2013), o meu colega Marcos Caldeira Mendonça informou que Mariza Guerra de Andrade lançará em breve, pela editora Autêntica, o livro Anel Encarnado, biografia do jornalista cearense Raimundo Magalhães Júnior. Todas biografias devem ser bem-vindas, se estão documentadas com firmes, inabaláveis alicerces fincados no solo da verdade. A colega Mariza, brilhante colaboradora desse mensário, possui credenciais para realizar o seu trabalho de biógrafa, mas vou descrever aqui episódios desconhecidos da vida do Magalhães. Acontecimentos lamentáveis.

Em 1963, o meu livro Vida e poesia de Olavo Bilac permanecia na lista dos mais vendidos, como se viu por uma pesquisa do jornal O Globo, divulgada na edição do dia 18 de outubro desse matutino, no citado ano. Devido a tal fato e a algumas revelações do livro que geraram escândalo, polêmicas, o jornalista Justino Martins, diretor da revista Manchete, quis publicar uma reportagem sobre a obra, pois pela primeira vez no Brasil um biografia se tornara best-seller. Convidado, fui à redação da revista e lá, enquanto falava com o secretário Arnaldo Niskier, ouvi gritos, um berreiro, o barulho forte de uma briga, de uma discussão feroz. Surpreso, indaguei ao Niskier:

-Diga-me, está havendo aqui um briga?

Arnaldo Niskier, futuro presidente da Academia Brasileira de Letras, confirmou a minha impressão:

-Sim, está havendo uma briga. É o Raimundo Magalhães Júnior que discute com o Justino Martins, porque este quer mandar fazer uma reportagem sobre o seu livro e o Magalhães não quer. Ele alega que a documentação da sua obra é suspeita.

Vermelho de cólera, eu reagi:

-Suspeita? Pois então quero que ele prove isto!

Sorridente, o Arnaldo Niskier bateu com a mão direita no cotovelo do seu braço esquerdo e me acalmou:

-Não se irrite, Fernando, o Raimundo está com dor-de-cotovelo, com uma bruta inveja do sucesso do seu livro, porque as biografias dele não são muito vendidas, ficam encalhadas nas livrarias...

A reportagem sobre a minha obra, apesar da oposição do Magalhães, saiu na edição do dia 23 de novembro de 1963 da Manchete, a revista mais importante do Brasil, naquela época. Ela foi feita pelo jornalista Esdras Passaes, ocupa três páginas e recebeu o seguinte título: “Olavo Bilac passado a limpo”. Eis início da reportagem:

“Um homem magro (eu, Fernando Jorge), meio místico, ar de profeta oriental, surge no cenáculo literário com um livro-bomba na mão, causando uma das maiores celeumas dos últimos tempos entre os homens de letras”.

Fulo de ódio, devorado pela inveja, o Magalhães publicou no Diário Carioca, em 24 de novembro de 1963, logo depois do aparecimento da reportagem, um extenso artigo contra o meu livro. O texto exibia este título, “Um biógrafo de Olavo Bilac”, e no fim da lenga-lenga o autor defecou esta cretinice:

“...podendo incidir num anátema de Fernando Jorge, direi francamente: ainda prefiro um bom chute do Pelé.”

Entrevistado por Flávio Cavalcanti, no seu programa de televisão, ele quis saber de mim:

-O que você achou da frase do Raimundo Magalhães Júnior sobre o seu livro, ao afirmar que prefere, em vez de sua obra, um bom chute do Pelé?

Respondi, de forma natural:

-Eu também prefiro um bom chute do Pelé, mas com uma condição: desde que a bola seja a cabeça horrorosa do Raimundo Magalhães Júnior...

Indo depois à casa do meu amigo Vianna Moog, membro da Academia Brasileira de Letras (casa número 23, da rua Marquês de Pinedo, no bairro carioca de Laranjeiras), o ensaísta de Heróis da decadência me esclareceu:

-Fernando, o Magalhães tem atacado o seu livro porque você cortou a asa dele. Antes do lançamento do seu livro, ele vivia dizendo, lá na Academia, que ia publicar a biografia definitiva do Olavo Bilac, mas aí apareceu a sua e o Raimundinho se sentiu frustrado.

Lembro-me de apenas ter respondido isto ao escritor gaúcho:

-Que inveja a desse sujeito, hem? Na minha opinião ele não devia chamar-se Magalhães e sim Cagalhães, já que bosteja até pela boca.

Ainda ouço, transcorridos tantos anos, a gargalhada retumbante do inesquecível Vianna Moog...

 

*                      *                      *

 


Agora mostrarei como o biografado por Mariza Guerra de Andrade era agente de uma ditadura de modelo fascista. Desculpe-me, Mariza, se vou desiludi-la.

O meu amigo Carlos Heitor Cony me contou, em 1975, no decorrer de um almoço na sede da Manchete, que quando o Magalhães trabalhava com ele nessa revista, uma noite o cearense nascido em Ubajara se excedeu na bebida e meio alto, porém lúcido, resolveu confessar:

-Sabe de uma coisa, Cony? A maior ambição da minha vida era ser diplomata, eu queria ser cônsul ou embaixador, entrar para o Itamaraty. Fui então procurar, em 1927, o Otávio Mangabeira, ministro das Relações Exteriores no governo do presidente Washington Luís. Expus a ele o meu desejo e o Mangabeira, friamente, afirmou que eu nunca poderia ser diplomata, porque sou vesgo, muito feio, e a minha estatura é bem baixa, quase a de um anão!

Perguntei ao Carlos Heitor Cony:

-E depois, ele se abriu ainda mais?

-Abriu-se. Soltou estas palavras: mas me vinguei, Cony, me vinguei do Otávio Mangabeira, porque quando ele, como inimigo do Getúlio, estava exilado em Nova York, eu me dirigi à sede do Reader’s Digest, onde o Otávio fazia traduções do inglês para o português e declarei aos diretores dessa revista, na minha função de agente do Estado Novo, que se eles continuassem a lhe dar trabalho, o ditador Getúlio Vargas, meu chefe, não iria permitir a circulação do Reader’s Digest no Brasil. E por causa disso o Mangabeira foi demitido de modo sumário.

Não pude deixar de comentar:

-Que baixeza, que ato torpe!

Contei ao Cony, em seguida, que fui confidente do jornalista Paulo Duarte. Este me disse que também estando exilado em Nova York, como inimigo da ditadura do Getúlio, onde produzia na grande cidade uma crônica diária para a National Broadcasting, o Raimundo foi até a sede dessa emissora e pediu, em nome do ditador do Brasil e da política da boa vizinhança, o imediato afastamento do “perigoso” Duarte. Consequência: o jornalista perdeu o emprego na hora.

Depois o Magalhães se apressou a ir até o Museu de Arte Moderna de Nova York, situado na West 53rd Street, na qual o Paulo Duarte, para sobreviver, incumbido pelo museu, executava inocentes trabalhos de pesquisa. O dedo-duro compareceu diante do senhor Philips Goodwin, diretor do estabelecimento, e começou a explicar:

-Vim à sua presença a fim de informá-lo, com autorização do governo do meu país, que o presidente Roosevelt dos Estados Unidos e o ditador Getúlio Vargas do Brasil, ligados por uma aliança política, militar e econômica, não querem que o subversivo Paulo Duarte trabalhe no seu museu.

Imperturbável, o senhor Philips Goodwin levantou-se da sua cadeira e todo rígido, empinado, pronunciou estas duas frases:

-Fique o senhor sabendo que o presidente Roosevelt e o ditador Getúlio Vargas não mandam nada aqui, no Museu de Arte Moderna de Nova York. E por favor, queira retirar-se.

Foi assim, conforme me narrou o próprio Paulo Duarte, que o senhor Philips Goodwin “botou para fora o Raimundo Magalhães Júnior, sujeito sem predicados”, agente de uma ditadura de modelo fascista num país da América do Sul...

 

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Escritor e jornalista, Fernando Jorge é autor de “Drummond e o elefante Geraldão”, que acaba de ser lançado pela Editora Novo Século e cuja primeira edição já está quase esgotada.


domingo, 6 de janeiro de 2019

DRUMMOND E SÉRGIO, NUMA BRIGA, ROLARAM NO CHÃO!


Carlos Drummond de Andrade me contou que no ano de 1934, redator em Belo Horizonte do Estado de Minas e do Diário da Tarde, foi para o Rio de Janeiro, quando Gustavo Capanema exercia as funções de ministro da Educação e da Saúde Pública, nomeado por Getúlio Vargas, eleito presidente da República pela Assembleia Constituinte daquele ano.
O poeta passou a ser o chefe do gabinete de Capanema. Um velho amigo seu, o advogado Rodrigo Melo Franco de Andrade, obteve o cargo de diretor do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Mais tarde Drummond se tornaria funcionário desse órgão.
Segundo as palavras do poeta, Rodrigo tinha o pseudônimo de Esmeraldino Olimpio. Era, pelo tronco paterno, bisneto de Rodrigo José Ferreira Bretas, primeiro biógrafo do Aleijadinho, e pelo tronco materno, sobrinho tetraneto de Francisco de Melo Franco, autor do célebre poema satírico O reino da estupidez, publicado em 1819.
Um tio de Rodrigo foi o excelente escritor Afonso Arinos, nascido na mineira Paracatu, autor de O mestre de campo, romance de costumes, e do drama histórico O contratador de diamantes, obra-prima do teatro brasileiro, com ação que decorre no Tijuco (atual Diamantina), e cujo personagem principal é Felisberto Caldeira Brant (o contratador), vítima do despotismo da Coroa Portuguesa. Daí a certeza: o vírus benfazejo da literatura estava no sangue de Rodrigo e o estimulou a gerar os contos do livro Velórios, aparecido em 1936, na época do inicio da Guerra Civil Espanhola.
A casa de Esmeraldino Olímpio, em Copacabana, transformou-se num ponto de reuniões de intelectuais. Drummond participava dessas reuniões e delas faziam parte o pintor Cândido Portinari, o historiador Otávio Tarquinio de Sousa, os poetas Vinicius de Moraes e Manuel Bandeira, os escritores Gastão Cruls, Lúcia Miguel Pereira, Francisco de Assis Barbosa, Afonso Arinos de Melo Franco, Sérgio Buarque de Holanda.
–Eu conversava horas a fio com o Sérgio – frisou Drummond – Ele me disse que em 1922, na casa de Ronald de Carvalho, situada na Rua Humaitá do Rio de Janeiro, ouviu o Mário de Andrade declamar o seu poema Pauliceia desvairada, marco do nosso Modernismo. Achavam-se presentes, nessa ocasião, o Teixeira Soares, o Peregrino Júnior, o Ribeiro Couto, o Osvaldo Orico, o Oswald de Andrade, o Manuel Bandeira, o Renato Almeida, o Austregésilo de Ataíde. A leitura produziu em todos forte impacto, mas escandalizou o Osvaldo Orico, poeta medíocre, enfadonho, futuro membro da Academia Brasileira de Letras.
Drummond me informou, em seguida, que no ano de 1924 o Sérgio Buarque de Holanda havia fundado, com Prudente de Moraes, neto, a revista Estética, de vanguarda e curta duração. Saíram apenas três números. Colaboraram nessa revista o próprio Drummond, o Aníbal Machado, o Graça Aranha, o Álvaro Moreyra.
Sempre curioso, perguntei ao poeta:
–Diga-me, você e o Sérgio se agarraram numa luta corporal? Luta tão feia, tão violenta, que fez ambos rolarem no chão? É verdade ou é mentira?
A resposta me surpreendeu:
–Pura verdade. Antes do pugilato o Sérgio se abria comigo, em confidências. Cheio de emoção, de nostalgia, revelou a mim que aos onze anos de idade o semanário infantil O Tico-Tico publicou a sua valsinha “Vitória-régia” e que aos dezoito anos escreveu o seu primeiro artigo, intitulado “Originalidade literária”.
–E o motivo da briga?
Drummond explicou:
O Sérgio Buarque de Holanda tinha uma namorada, lá no Ministério da Educação. Ela trabalhava no meu gabinete. Moça bonita, simpática, muito vaidosa, de bunda enorme, bem arredondada. Uma bunda abundante, como as das mulheronas dos quadros do pintor flamengo Rubens.
–Afinal de contas – perguntei sem conter o riso – o que levou o Sérgio a se engalfinhar com você?
–Em estado de fúria, espumejando, ele invadiu o meu gabinete, pois a bunduda lhe declarou que eu a assediava, queria transar com ela. Juro, não fiz isto, apenas me mostrava gentil, nada mais...

Diante do Sérgio, e sem se descontrolar, Drummond negou tudo, mas o possesso o agrediu com um soco. Os óculos do poeta voaram. Ambos se atracaram, como galos numa rinha. Sérgio berrava, chamando Drummond de canalha. Logo rolaram no chão e os dois tiveram que ser apartados.
O poeta concluiu:
–A nadeguda era leviana, Fernando, inventou a história para enciumar o Sérgio. De modo constante o ciúme, filho degenerado do amor ou da paixão, contrai matrimônio com a loucura. E veja a ironia, eu e o Sérgio deixamos de ser amigos, porém o Chico Buarque de Holanda, seu filho, gosta de mim, me abraça, vive me elogiando...
Após encerrar o comentário, Drummond quis conhecer a minha opinião sobre o livro mais famoso do ex-amigo, o ensaio Raízes do Brasil. Não hesitei:
–Essa obra do pai do Chico é de 1936, mas no meu raciocínio a sua tese, de que a colonização lusa foi vitoriosa no Brasil por causa da perfeita identificação do português com a nossa terra, a sua tese não é inovadora, original, pois três anos antes, em 1933, Gilberto Freyre já a defendera de modo mais minucioso, abrangente, no seu clássico livro Casa-Grande & Senzala, desdobramento de uma tese de Freyre apresentada em 1922 na Universidade de Colúmbia.
–Se é assim – Drummond deduziu – há lógica no seu julgamento. E contra ela, a lógica, a interpretação falsa se pulveriza, desmorona.
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Escritor e jornalista, Fernando Jorge é autor de “Drummond e o elefante Geraldão”, que acaba de ser lançado pela Editora Novo Século