sábado, 4 de julho de 2020

QUE BICHO É ESTE?


Critiquei os erros de português do Josué Montello no meu livro “A Academia do fardão e da confusão”, lançado pela Geração Editorial, e que descreve a verdadeira história da Academia Brasileira de Letras. Reconheci, nessa minha obra: o Josué era um escritor de talento. Ele morreu há dois meses e agora devemos respeitar a sua memória. Pelo fato de pensar assim, fiquei chocado ao ler a seguinte notícia, publicada na edição do dia 12 de março de 2006, do jornal “O Globo”:
            "Um animal literário, foi esta a imagem usada pelo secretário geral da Academia Brasileira de Letras, Cícero Sandroni, para definir o acadêmico Josué Montello, morto na noite de quarta-feira e enterrado no mausoléu da ABL, no cemitério São João Batista."
            A língua portuguesa, rica, plástica e eufônica, é ótima para a criação de imagens, mas francamente, chamar de animal um acadêmico falecido, não me parece coisa de bom gosto. Comparar uma pessoa a um ani­mal, de maneira simples, direta, pode equivaler a um insulto, pois na na­tureza vemos bichos de todos os tipos, como o pavão, símbolo da vaidade; o rato, símbolo do roubo e da gula insaciável; o burro, símbolo da burrice e da teimosia; a serpente, símbolo da traição; o porco,símbolo da sujeira; a hiena, símbolo da parasitismo; o escaravelho,  símbolo da atra­ção mórbida pela carne podre dos cadáveres.
            Mas é verdade que às vezes o nome de um animal, unido ao nome de um ser humano, transmite a este ser mais brilho, mais realce. Ci­temos Rui Barbosa. Representante do Brasil na 2ª Conferência Internacional de Haia, efetuada em 1907, esse eloquente baiano lá se destacou entre as dezenas de delegados de outros países e, por causa disso, recebeu a alcunha de “A Águia de Haia”.
            Vulto imperecível da literatura francesa, o escritor Bossuet (1627-1704), após se tornar bispo de Meaux no ano de 1681, passou a ser conhecido como “A Águia de Meaux", graças à magnifica eloquência dos seus sermões.
            A águia é uma forte, majestosa ave de rapina, com visão aguçada, e que paira nas grandes alturas. No “Baghavad Gitã”, ela é o verbo divino. Símbolo da Rússia tzarista até 1917 e do império austríaco até 1919, está presente no brasão dos Estados Unidos. Se fosse apenas um animal pre­dador, sem outras características, os brasileiros não teriam dado a Rui Barbosa o cognome de “A Águia de Haia”, e os franceses, a Bossuet, o de
“A Águia de Meaux”
            Bem sei que "animal literário” é apenas uma expressão usada algumas vezes, mas eu a considero infelicíssima. Cícero Sandroni, o destravado secretário da ABL, cujo sorriso enjoativo me lembra o sabor de um mel com excesso de açúcar, rotulando o Josué Montello de "animal literá­rio”, logo espicaçou o meu sarcasmo.
            Peço ao Cicero para assumir uma pose ciceroniana, a fim de declamar comigo estes versos de Pedro Diniz, poeta português, do século XIX:

                                “Relincha o nobre cavalo,
                                os elefantes dão urros,
                                a tímida ovelha bala,
                                zurrar é próprio dos burros.”

            Nestes versos não aparece o “animal literário”. Como é o som dele? Eu gostaria de saber se a sua voz é idêntica ao mugido da vaca ou ao rosnado do cachorro, ao pio da coruja ou ao ornejo do burro, ao gó-gó da galinha ou ao guincho do rato, ao chem-chem do urubu ou ao ronco do porco, ao rã-rã do sapo ou ao zum-zum do mosquito, ao quá-quá do ganso ou ao memé-memé do cabrito...

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Escritor e jornalista, Fernando Jorge é autor do livro As lutas, a glória e o martírio de Santos Dumont, lançado pela HaperCollins.

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