Um piedoso jovem reprovava certo ancião que gostava de vinho:
-Meu senhor, domine esta fraqueza, do contrário jamais terá saúde.
-Ora - respondeu o velho - o bom vinho faz o bom sangue, o bom
sangue produz o bom humor, o bom humor estimula os bons pensamentos, os bons
pensamentos promovem as boas obras, e as boas obras conduzem o homem ao céu.
Portanto, o bom vinho nos leva a Deus...
-Assim seja - acrescentou o moço - convertido, por seu turno, à
seita dos apreciadores dessa edênica bebida.
O fato é que o vinho, tomado com moderação, possui indiscutíveis
propriedades terapêuticas. Tonifica o sistema nervoso, aumentando as energias,
restaura a vitalidade dos tecidos e preserva as qualidades nutritivas do
sangue.
Terêncio Varrão dizia que o vinho tinto fortifica, o branco é
diurético, o amarelo digestivo, o roxo refresca e o velho esquenta.
O duque Albert de Sachsen-Teschen era tão fraco na meninice que os
médicos lhe prescreveram uma dose diária de vinho. Ele, até morrer, aos oitenta
e quatro anos, nunca deixou de tomá-lo todos os dias.
Às vezes
sinto inveja dos homens de outras épocas, pois conseguiram saborear estranhos
vinhos. Que gosto devia ter o que era proporcionado pelas sumarentas uvas de
Rodes! Virgílio o enaltece nas “Geórgicas”,
afirmando que podia servir para as libações dos deuses. No reinado do imperador
Augusto havia um no qual misturavam alcatrão, cera, cinzas, amêndoas amargas,
suco de pepinos selvagens, e folhas e rebentos de pinheiros! Imaginem como
seria esquisito... O vinho de Falerno, segundo o Príncipe dos Poetas Latinos,
tinha a cor do âmbar. E o de Cós, afirma a tradição, excitava o apetite, mas o
de Creta cheirava a flores...
Degustar lentamente um vinho antigo constitui um dos prazeres
superiores da existência. Há qualquer coisa de puro, de sagrado, imemorial,
nesse ato. Milhares de homens ilustres, que passaram sonhando pela terra,
tiveram o mesmo hábito. Talvez, bebendo vinho, nós estejamos ingerindo o sangue
deles.
Convenhamos que o ser humano traz dentro de si uma fera
prisioneira, prestes, ao mínimo incidente, a escapar de sua jaula. Bendito, por
conseguinte, o sumo generoso extraído do fruto da vinha, quando adormece o
animal bravio e desperta os nossos melhores sentimentos!
Conta-se que Ésquilo, na mocidade, repousando certa vez à sombra
de uma parreira, viu Baco em sonhos, o deus do vinho, que lhe ordenou
escrevesse tragédias em sua honra. Lenda ou verdade, o indubitável é que o
cantor das velhas teogonias se conservou, pela vida afora, um sincero adepto
daquele mancebo de formas esbeltas... O malicioso Luciano de Samosata o acusa
francamente dessa paixão algo incontrolável, embora o honesto Plutarco diga que
o vinho apenas contribuiu para inflamar o estro do poeta, arrancando sonoros
versos do fundo de sua taça.
Anacreonte, o grego, Horácio, o latino, e Omar Khayyam, o persa,
irmanaram-se no mesmo culto ao deus que espreme os cachos maduros e anda
coroado de pâmpanos e de rosas. Inspirador
constante dos literatos, o rubicundo Baco tem movido a mão de muito escritor
preguiçoso, friorento. Quanta frase bela, que encontramos nos livros, foi
sussurrada por ele! Quantos poemas imortais, que nos embevecem, nasceram de um
copo cheio de vinho capitoso, perfumado!
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Escritor e jornalista, Fernando Jorge é
autor do livro “Eu amo os dois”, lançado pela Editora Novo Século.