quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

Um grande poeta da língua portuguesa


O uso do punhal, lançado pela editora Escrituras, prova que ele é um grande poeta da língua portuguesa. Ninguém ilude a posteridade. Esta juíza imparcial o colocará entre os maiores da moderna literatura brasileira. Talento é talento e reluz como os diamantes sem jaça.
Impressionou-me, no livro O uso do punhal, a densidade de sua poesia originalíssima. Não posso compará-lo a nenhum outro grande poeta nosso. Apenas afirmo que ele está na mesma altura de Drummond, de Manuel Bandeira, de Cassiano Ricardo. Declamei, com voz cheia de emoção, estes versos da página 52 do seu livro:

“No rosto a cicatriz,
corte fundo para sempre,
ferida que não se diz.

Não ficou marca de sangue
mas a agulha que penetra
as sílabas vãs de letras vis.

Na pele a cicatriz,
navalha que risca e escreve
as letras finas do giz.

Na boca a cicatriz,
o silêncio que se consente
e nunca se contradiz.

Nos dentes a cicatriz,
daquele que morrer não pôde,
não pôde porque não quis”.

O virtuosismo da composição é admirável, porém mais admirável é o seu conteúdo emocional. Só quem sofreu e se desiludiu, após mergulhar no fundo abismo da angústia indelével, poderá sentir com mais intensidade a beleza dessa poesia repleta de dor digna, estóica. Álvaro Alves de Faria, no poemeto “A cicatriz”, exprime o inexprimível, atingindo o mesmo patamar, a mesma profundidade do Fernando Pessoa que escreveu os seguintes versos:

“Contemplo o lago mudo
Que uma brisa estremece,
Não sei se penso em tudo
Ou se tudo me esquece.

O lago nada me diz,
Não sinto a brisa mexê-lo,
Não sei se sou feliz,
Nem se desejo sê-lo.

Trêmulos vincos risonhos
Na água adormecida.
Por que fiz eu dos sonhos
A minha única vida?

O aniquilamento, na poesia de Álvaro, é ressurreição, metamorfose, como a crisálida se transforma em borboleta:

“Três golpes do lado esquerdo
bastam para pôr fim a tudo:
depois é só viver a eternidade”.

Observem a sutileza. Álvaro não escreveu “viver na eternidade” e sim “viver a eternidade”, pois na primeira expressão há materialismo, apego à carne, e na segunda a existência imaterial, espiritual, a libertação exaltada pelo simbolista Camilo Pessanha (1867-1926), poeta luso viciado em ópio e autor do volume Clepsidra, aparecido em 1920:

“Roubos, assassinatos!
Horas jamais tranquilas,
Em brutos pugilatos
Fracturam as maxilas...

E eu sob a terra firme,
Compacta, recalcada,
Muito quietinho. A rir-me
                                 De não me doer nada.”


Dilaceramento é a poesia de Álvaro Alves de Faria, mas ela o prende à vida. Sem a poesia, Álvaro deixaria de respirar:

“A poesia feriu-me para sempre

no tropeço de um poema que não termina”.

Augusto dos Anjos, no soneto “Infeliz”, de 1901, aconselhou à sua alma:

“E fica no teu ermo entristecida,

Alma arrancada do prazer do mundo,

Alma viúva das paixões da vida”.

Meu querido Álvaro, grande poeta do Brasil, continue a extrair versos de sua alma, que é brasa cor de cinza. Ela flameja no cárcere da vida. Você é o triste peregrino da solidão, desse imenso deserto de areias frias.

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