sexta-feira, 10 de novembro de 2017

Clodovil, a Bíblia e Santo Agostinho

No programa de televisão do Gugu Liberato, o Ronaldo Ésper sugeriu que o Clodovil Hernández teria sido assassinado. E uma ex-empregada do costureiro, Maria Guimarães, deu apoio ao Ronaldo. Na opinião dela um político de maus bofes contratou um garotão lindo para o matar. A doutora Maria Hebe Pereira de Queiroz, advogada do Clodovil, rapidamente contestou essa história.
Ao ver tal discussão, lembrei-me de um episódio. Em 1993, após a Editora Mercuryo lançar o meu livro Pena de morte: sim ou não? Os crimes hediondos e a pena capital, fui convidado a comparecer no programa do Clodovil, na TV Gazeta, a fim de ser entrevistado por ele.
Antes de entrar no recinto do programa, atravessei enorme salão que havia sido pintado de branco. Saía de suas paredes um fortíssimo cheiro acre de tinta. O cheiro invadiu aquele recinto, já repleto de pessoas, cerca de duzentas, a maioria moças e senhoras meio idosas. Ali o Clodovil estava em maior altura, num estrado, junto de estreita e comprida mesa, onde colocou vistoso aparelho de servir café. Ele mesmo o preparava e o servia a todos entrevistados.
Como o cheiro da tinta se espalhara no recinto, o costureiro, antes do programa ir ao ar, não se conteve e se pôs a berrar:
-Canalhas! Canalhas! Lambedores de bundas! Isto é uma conspiração, um sujo plano dos meus inimigos para me deixar tonto, doente, intoxicado, e assim destruir o meu programa! Seus filhos nojentos de cadelas de rua!
As expressões pesadas se sucediam, jorravam da sua boca de lábios grossos. Tive a impressão de estar ouvindo a ruidosa descarga de uma latrina entupida de cagalhões. Rubro, apoplético, a espumejar, de olhos esbugalhados, que pareciam querer pular das órbitas, ele vociferou:
-Seus bostas, seus piolhos de cafetinas sifilíticas, eu já tenho convite da TV Globo, eu já tenho!
A fúria do Clodovil me chocou, pois a sala se achava cheia de mulheres jovens e senhoras de certa idade, mas para o meu imenso espanto, elas o aplaudiram, bateram palmas...
Sentei-me diante dele. O programa foi ar. Mais calmo, soltou estas palavras:
-Eu aposto, Fernando, que você não sabe quase nada a meu respeito.
Respondi, tranquilo:
-Clodovil, conheço bem a sua vida.
-Não acredito, então conte o que sabe de mim.
-Você, na infância, fazia roupas para bonecas. Aos dezesseis anos vendeu seis modelos de vestidos para o gerente de uma loja e conseguiu, graças à venda, mais dinheiro do que o seu pai ganhava em um mês de trabalho.
-Nossa, é verdade, mas aposto, você não conhece outras coisas da minha vida.
Duas câmeras de televisão avançaram e focalizaram o meu rosto. Afirmei:
-Conheço. Nas décadas de 1960 e de 1970, você brilhou muito, vestiu as mulheres mais elegantes de São Paulo. Tornou-se rival do Dener. O sucesso o levou a ganhar, em 1968, um programa na Rádio Panamericana, porém foi demitido, por criticar as roupas da dona Yolanda Costa e Silva, esposa do general Costa e Silva, presidente da República. Em seguida participa de um programa feminino na TV Globo. Também teve de sair, após brigar com a apresentadora Marilia Gabriela. Outro fato, você chegou a ser ator teatral na peça Seda pura e alfinetadas.
Surpreso, gesticulando, o Clodovil me interrompeu:
-Nossa, como você é perigoso! Continue, estou es-pan-ta-di-ssi-mo!
-Expulso da TV Globo, você foi para a TV Manchete. E lá acabou sendo demitido duas vezes, a primeira em 1986, por chamar a Assembleia Constituinte de Assembleia Prostituinte.
-Ah, meu Deus Fernando, você conhece todos os podres da minha vida! Estou en-ver-gon-ha-di-ssi-mo!
-Você quer que eu pare?
-Não, continue, quero sofrer.
-Vou parar.
-Não, não pare, eu exijo!
-Está bem. Você também foi demitido da CNT.
-E sabe por que, Fernando?
-Sei, é porque você perguntou à Adriane Galisteu, logo depois da morte do Ayrton Senna, se ele funcionava na cama, se não era broxa, impotente. A pergunta gerou protestos, revolta, indignação. Viram na pergunta um desrespeito à memória do piloto recém-falecido.
-Ai, meu Deus, que língua a sua, Fernando!
-Me desculpe, Clodovil, mas sob este aspecto você não tem autoridade para me criticar.
-É, não tenho, mas admita, você é perigoso.
-Admito, porém acho você mais perigoso que a minha pessoa.
Nesse momento ele pegou o meu livro sobre a pena de morte e disse:
-Fernando, aposto que você não sabe que o Santo Agostinho apoiava a pena de morte.
-É claro que sei, Clodovil. Então você não leu o meu livro. Conto este fato no capítulo dois da minha obra. Adoro Santo Agostinho. Gosto até de citar uma frase dele em latim.
Ergui-me da cadeira e citei a frase:
-Apure os ouvidos. Quid est autem diu vivere, nisi diu torqueri? Dou a tradução. “Que outra coisa é uma larga vida, senão um largo tormento?”
Ligeiro, o Clodovil informou:
-Fernando, eu li esta frase na Bíblia, hoje de manhã.
-Desculpe-me, você não leu.
-Ai, Fernando, não me desminta, li hoje de manhã na Bíblia. Já li esta frase mais de cem vezes na Bíblia.
-Não leu.
-Ai, meu Deus, você está me chamando de mentiroso? Repito, eu li esta frase hoje de manhã na Bíblia.
-Garanto, não leu, não pode ter lido.
-Ai, Fernando, além de me chamar de mentiroso, você quer me humilhar? Por que está fazendo isto comigo, por quê? Fiz algum mal a você, fiz? Diga.
Expliquei, pacientemente:
-Clodovil, você não pode ter lido esta frase na Bíblia, pois Santo Agostinho nasceu no ano 354 da nossa era e esse livro sagrado é anterior a ele, surgiu séculos antes de sua vinda ao mundo. É uma questão de lógica. Portanto a frase do autor da famosa obra De civitate Dei (“A cidade de Deus”), não está na Bíblia, nunca esteve, o seu nome não aparece nela.
Batendo na testa, o Clodovil gemeu:
-Ai, que fora que eu dei nesse programa de televisão! Que vergonha, que vergonha! Sinto-me hu-mi-lha-do, a-rra-sa-do!
Fiquei com pena dele, pois todas as pessoas na sala do programa começaram a rir, até os cameramen. E veio à minha memória esta frase de Tomás de Kempis (1380-1471), escritor ascético alemão, inserida no livro A imitação de Cristo (“De imitatione Christi”):
“Muitas vezes rimos, quando devemos chorar” (Saepè vane ridemus, quando merito flere debemus).

_____________

Escritor e jornalista, Fernando Jorge é autor de Drummond e o elefante Geraldão, que acaba de ser lançado pela Editora Novo Século e cuja quarta edição já está quase esgotada.

Nenhum comentário: