Liza Minelli |
Fui
amigo íntimo de Ênio Silveira, diretor da editora Civilização Brasileira, e
troquei com ele dezenas de cartas, que o escritor Gabriel Kwak, secretário
geral da UBE, pretende divulgar num livro. Aliás, devido a esse relacionamento,
tive de depor na Polícia Federal, pois o meu querido amigo, na época do regime
militar, era secretário do Partido Comunista. Um delegado alto, forte, corpudo,
perguntou a mim:
-O
senhor sabia que Ênio Silveira é comunista?
Respondi:
-Sabia.
-E
sobre o que conversavam?
-Conversávamos
sempre, antes do Golpe de 1964, sobre livros, literatura, arte, Castro Alves,
Raul Pompéia, Machado de Assis, Capistrano de Abreu, Gilberto Freyre, etc, etc.
E não pertenço a nenhum partido, mas sou um democrata, um amante da liberdade,
um defensor do direito de cada cidadão pensar como quiser, desde que se oponha
a regimes de natureza nazi-fascista.
De
cara brava, o homenzarrão afirmou:
-Fica
bem claro, o senhor é um inocente útil, fecha os olhos diante das ações
subversivas dos marxistas-leninistas.
Amigo
do Ênio, um funcionário da Polícia Federal descreveu para ele como foi o
interrogatório a que fui submetido. Rindo, o Ênio comentou:
-Meu
caro “inocente útil”, se a coisa continuar assim, logo até o Carlos Lacerda vai
ter que depor...
Eu
indaguei:
-Você
foi amigo do Carlos?
-Fui,
mas nos separamos. O seu direitismo não combinava com o meu esquerdismo.
Entretanto, depois de cair em desgraça junto dos milicos golpistas, que
apoiara, um dia ele telefonou para mim e disse: Ênio, quero reatar a nossa
amizade, sinto saudades das nossas conversas, você aceita? Condescendi,
passamos novamente a nos encontrar.
Esta
minha conversa com o Ênio ocorreu na sede de sua editora, uma casa velha da rua
Muniz Barreto, número 715/721, do bairro carioca de Botafogo. O meu amigo tirou
de uma gaveta um retrato em bom tamanho do Carlos Lacerda, no qual vi carinhosa
dedicatória. Informou-me:
-Penso
que ele me deu esta foto por gratidão.
-Como
assim?
-Ajudei-o
a sair de uma enrascada. Combinamos um almoço num restaurante do Leblon. Eu
cheguei primeiro e quando o Carlos apareceu, veio na minha direção com passo
incerto, vacilante, sinuoso. A distância era de uns vinte metros, porém notei,
pelo seu andar e pela sua fisionomia, que estava alcoolizado. No meio da sala
do restaurante havia uma grande e arredondada mesa de frios, de saladas. Pois
bem, o Carlos se achava tão bêbado que desabou em cima dela, derrubando os
pratos, os talheres, as verduras, as beterrabas, os pepinos, os tomates, os
ovos cozidos. Parecia o estouro de um raio.
-E
o que você fez?
-Levantei-me
depressa, e aturdido, com a ajuda de vários garçons, procurei erguê-lo, mas foi
difícil. O seu corpo pesava como alto monte de chumbo. E Fernando, que luta
para o pôr de pé e o enfiar no automóvel! Travei em seguida outra peleja, a fim
de impedir a divulgação desse desmoronamento nos jornais, nas revistas, nas
emissoras de rádio e de televisão. Agora você pode compreender porque ele me
enviou o seu retrato com a dedicatória carinhosa...
Contemplando
meu olhar surpreso, o Ênio prosseguiu:
-Além
do Carlos Lacerda, outra pessoa bêbada me deixou atrapalhado.
-Quem?
-A
Liza Minelli.
Respondi,
sacando o meu caderninho do bolso, com o objetivo de registrar as suas
palavras:
-Explique-me
como isto aconteceu.
Tranquilo,
o Ênio Silveira começou a narrar:
-Após
chegar aqui, no Rio de Janeiro, a Liza Minelli gostava de conversar comigo. Eu
a convidei para escrever as suas memórias, a fim de serem lançadas
simultaneamente pela minha editora e por uma editora americana. Achou
interessante a proposta, mas logo desistiu de apoiar o projeto, pois se
apaixonou pelo compositor Edu Lobo. Ele se tornou a sua ideia fixa, não quis
saber de mais nada. Liza o chamava de wolf
in sheepis skin (“lobo com pele de ovelha”).
-Paixão
voraz, Ênio?
-Paixão
lelé da cuca, Fernando, paixão de doida internada num manicômio. Essa americana
gemia, soluçava de paixão. Desejando acalmá-la, apagar as labaredas daquele
fogo vulcânico da estrela do filme Cabaré,
de 1972, levei-a até a cidade litorânea de Cabo Frio, onde eu veraneava numa
casa em cima de um penhasco. E disse a Liza: o Edu Lobo é casado com uma bela
moça, chamada Wanda Sá, e a ama muito.
-A
sua reação?
-Soltou,
ou melhor, rosnou estas palavras, i
don’t care a hang (“pouco me importa”). E garantiu, the course of true love never did run smooth (“o caminho do amor
verdadeiro nunca foi fácil”).
-Ouvindo
isto, você ainda tentou apagar o incêndio talvez vaginal do corpo histérico da
Liza Minelli?
-Tentei.
No afã de distraí-la, de desviar o seu maníaco pensamento da figurinha
esquelética do Edu Lobo, fui com ela aos locais turísticos de Cabo Frio, às
salinas, à lagoa de Araruama, ao forte de São Mateus, à ponte Feliciano Sodré,
à igreja de Santa Maria dos Anjos, etc, etc. e não adiantou nada, a gringa só falava
do Edu Lobo, volta e meia dizia, love at
first sight (“foi amor à primeira vista”). Mas eu não parei de insistir,
Liza, o Edu é casado, adora a sua esposa, e a americana replicava, all’s fair in love and war (“no amor e
na guerra, tudo vale”).
-Puxa,
que paixão, Ênio! Essa mulher sofria de um teimoso desarranjo mental, em vez de
ser vítima de um passageiro desarranjo intestinal!
-É,
Fernando, o seu cérebro ficou avariado. Uma noite, lá na casa do penhasco, após
comer bastante feijão preto no almoço, ela me pediu para lhe dar bebida (give me to drink, some drink). E exigiu
uma “bebida intoxicante” (an
intoxicating drink). Peguei a garrafa do uísque Black and White e enchi com ele a metade de um copo. Liza
protestou, queria “beber como um tubarão” (to
drink like a shark), de um só trago (to
drink off in one gulp). Esvaziou a garrafa em menos de uma hora e agarrando
outra, do uísque Old Smuggler, não
cessou de o entornar na garganta roxa, de veias intumescidas.
Ênio
Silveira fez uma pausa e não tardou a continuar:
-Meu
leal amigo Fernando Jorge, agora vem a parte mais dramática. A Liza Minelli
pulou da cadeira e disse, com voz rouca, que “morria de tristeza”, que “todas
as suas esperanças se desfizeram” (die
of broken heart, all our hopes fell to the ground). Sonhava em “ter apenas
uma palavra” do Edu Lobo, (a word with
you). E jurou estar “a morrer de amor” (to die of love), porém disposta “a encarar a morte de maneira
firme” (to look death stead fastly in
the face). Aproximou-se da porta de entrada da casa e tonta, assumindo um
ar trágico, bêbada como uma cachaceira, implorou a presença da morte para a
“libertar da sua vida desgraçada” (a
death, come and put an end to my wretched existence).
-Meu
Deus! E ai, Ênio?
-Aí,
Fernando, ela abriu a porta de entrada da casa e citou este provérbio
americano: one pair of heels is often
worth two pairs of hands (“um par de calcanhares, às vezes, vale por dois
pares de mãos”). Provérbio que corresponde à nossa expressão “pernas pra que te
quero?” Nervoso, agitado, compreendi imediatamente, Liza ia suicidar-se,
jogando o corpo nos rochedos. Lembrei-me, num átimo, do suicídio em 1969 de sua
mãe, Judy Garland, encontrada morta no banheiro do seu apartamento londrino,
depois de ter ingerido uma cavalar quantidade de vodca e de pílulas para
dormir. Ligeiro, segurei a Liza Minelli pela cintura, impedindo-a de se atirar
no penhasco. Embora bem pesada, entupida de álcool, consegui arrastar o seu
corpo e colocá-la numa cama, onde se afundou, roncou e peidou, durante quase um
dia inteiro.
E
o Ênio Silveira concluiu:
-Repito,
Fernando, o Carlos Lacerda e a Liza Minelli foram as duas pessoas no pileque
que mais me deixaram atrapalhado...
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Escritor e jornalista, Fernando Jorge é autor de Drummond e o elefante Geraldão, que
acaba de ser lançado pela Editora Novo Século e cuja primeira edição já está
quase esgotada.