A literatura brasileira se enriqueceu agora com um romance
autobiográfico de primeira categoria, O Brasil, de Mino Carta, lançado
pela Editora Record. Obras desse caráter, na literatura do nosso país, romances
autobiográficos, são A
conquista e Fogo fátuo,
do Coelho Neto, publicados respectivamente em 1899 e 1929; O Ateneu,
de Raul Pompéia, joia da nossa literatura, aparecida em 1888; Fretana,
de Carlos Dias Fernandes, livro publicado em 1936.
Nos dois romances autobiográficos do maranhense Coelho
Neto, que chegou a ser eleito Príncipe dos Prosadores Brasileiros (e muito
combatido pelos modernistas de 1922), ele evoca os vultos da sua geração
literária, Olavo Bilac, Paula Nei, Luís Murat, Aluísio Azevedo, Guimarães
Passos, etc. Em O Ateneu, do fluminense Raul d’Ávila Pompéia, obra de intensa
densidade psicológica, narrada na primeira pessoa, esse escritor angustiado
(suicidou-se) descreve o drama de um menino (ele próprio) metido num internato.
Fretana, do pernambucano Carlos Dias Fernandes, é a reminiscência
dos personagens e dos fatos do nosso movimento simbolista, onde se destacou o
grande poeta negro Cruz e Sousa. Um dos episódios mais impressionantes do
referido romance: a descrição dos funerais desse poeta infeliz, torturado pela
miséria, cujo cadáver viajou num vagão de transporte de bois e muares.
O Brasil,
de Mino Carta, é a evocação ora sentimental, ora irônica, ora sarcástica, de
todo um período da história de nossa imprensa contemporânea. Aliás, não apenas
dessa imprensa, mas também da política brasileira, sobretudo a da época do
Golpe de 1964, durante a qual, como frisei no meu livro Cale a boca, jornalista!, o paciente Mino, devido aos cretinos interrogatórios dos
gorilas, ficou com a auréola dos santos, a sua linda coroa de luz.
O romance autobiográfico O Brasil já se mostra indispensável
para os estudantes dos cursos de Jornalismo e para os que desejam conhecer, de
maneira larga, minuciosa, uma fase crucial da história do Brasil. Mino Carta
maneja, com absoluta elegância e desenvoltura, a opulenta língua portuguesa.
Tem definições lapidares:
“A tortura é a forma mais vil da covardia...” (página 66).
“... estes generais ganharam estrelas, jamais batalhas”
(página 70).
Às vezes, num traço rápido, singular, caricatural, Mino
fotografa a realidade:
“... morena brutalmente silenciosa” (página 146).
“... Victor Civita sai de trás da mesa em forma de
feijão...” (página 166).
“Com o tempo, o rosto de Sarney assumiu-se como máscara da Comedia dell’Arte, misto de Capitan Spaventa, Dottor Balanzone e Brighella, o bom
companheiro de Arlequim”... (página 319).
O talento de escritor de Mino avulta nos retratos de
figuras sinistras ou não. Vejam como ele descreve as pessoas macabras ou as
perigosas:
“... um homenzarrão de olhos azuis de frieza aterradora,
entregue à volúpia do comando e à índole feroz dos germanos” (retrato do
delegado, ou melhor, do monstro Sérgio Paranhos Fleury, página 62).
“É gordo, nariz bulboso, as mãos sobre a mesa são dois
sapos a engatilhar o salto, a pele do rosto também evoca o batráquio” (retrato
do ministro, ou melhor, do sinistro Armando Falcão, página 86).
“... chegou de terno branco, panamá, sapatos bicolores.
Pele azeitonada, nariz predador, olhos negros, parece-me mais siciliano do que
qualquer siciliano nato” (retrato do jornalista, ou melhor, do mafioso Assis
Chateaubriand, página 115).
“Por onde passara, o homem pançudo de cabelos pintados na
tonalidade acaju, rosto flácido de tez rosada em que se plantavam duas seteiras
em lugar dos olhos, deixara um rastro de assaltos aos cofres públicos...”
(retrato do governador, ou melhor, do assaltante Adhemar de Barros, páginas 187
e 188)
“...impecável interprete de tráficos escusos em mercados
delirantes de insinuações sórdidas e jactâncias grosseiras, varrido pelo vento
do deserto a trazer o cheiro da bosta de camelo” (retrato do político, ou
melhor, do embostelado Paulo Salim Maluf, páginas 267 e 268).
Exibindo o aspecto físico dessas figuras, Mino Carta coloca
diante de nossos olhos, igualmente, as suas almas turvas. Características que
se ajustam, de modo perfeito, à natureza de tais monstros. Olhem, por exemplo,
este retrato do ex-capitão Heitor de Aquino Ferreira:
“Heitor é sombrio mesmo quando ri, bicho retesado no
esforço de conter a agressividade” (página 270).
Eis como o autor, repleto de ironia, nos apresenta “o
príncipe dos sociólogos” (esta definição é dele):
“Fernando Henrique é assunto inesgotável, esquerdista
bombástico desde a mocidade em odor de pendores comunistas, narciso sedutor da
USP” (páginas 278 e 279).
Lendo este trecho do livro O Brasil, eu me convenci ainda
mais de que FHC sempre foi um esquerdista de fachada. Esperto, falastrão, tenaz
estuprador da respeitável senhora Língua Portuguesa, ele não para de cometer
solecismos. Hoje transformado em ídolo dos Mesquitas, o senhor FHC escreve
artigos verbosos, tediosos, dignos de serem vendidos nas farmácias, pois causam
profundas sonolências, geram até pesadelos.
A leitura do magnético livro de Mino Carta revela como o
poder político é efêmero. Cadê o poder do general Emilio Garrastazu Médici,
“dotado da arrogância dos recalcados”, segundo Mino? Cadê o poder do Golbery do
Couto e Silva, outro general, apelidado de Mago do Planalto, “homem enxuto,
miúdo, fisicamente nervoso”? Cadê o poder do doutor Ulysses Guimarães, que
conforme Mino, tinha um “sorriso de boca fechada”? Cadê o poder de Jânio
Quadros, “magrelo empinado, olhar assimétrico, ares de galo de rinha”? Cadê o
poder do Antônio Carlos Magalhães, baiano munido de “violências medievais, de ferocidades
sicilianas”? Todos eles, porém, estão vivos, respirando, bufando, no fascinante
O Brasil, romance autobiográfico do talentosíssimo Mino Carta, e
todos nos trazem à memória a seguinte frase da obra intitulada Imitação de Cristo, atribuída ao místico alemão Thomas Hemerkem Kempis (1380-1470):
“O quam cito transit gloria mundi!”
(“Oh, quão ligeira passa a glória deste mundo!”)
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Escritor e
jornalista, Fernando Jorge é autor de “Drummond e o elefante Geraldão”,
que acaba de ser lançado pela Editora Novo Século e cuja primeira edição já
está quase esgotada.