domingo, 27 de outubro de 2019

Walt Whitman sonhou um cristianismo singular


Escritor de talento, J. R. Guedes de Oliveira, autor do excelente livro Quatro figuras, solicitou-me um depoimento sobre Walt Whitman. Senti-me honrado com o convite e enviei-lhe o texto abaixo reproduzido, com este título: “Walt Whitman sonhou um cristianismo singular”.
“A franqueza do poeta Walt Whitman não era rudeza e sim autenticidade. Numa carta enviada à sua mãe, em 1862, no ano do aparecimento de Os miseráveis, de Vitor Hugo, ele se classificou como “um grande búfalo selvagem, recoberto de pêlos". Comparação apropriada, pois nada detém o búfalo nas pradarias e nas regiões pantanosas. Esse animal da família dos bovídeos, com mais de dois metros de comprimento, é um símbolo de força, de arrojo, de coragem, de tenacidade, de independência. E nos versos soltos de Walt Whitman existe essa força, o ímpeto da alma livre, a perseverança no amor ao próximo, a completa independência do pensamento.
Só podia ter um espírito vigoroso o poeta que exaltou a democracia, glorificou o homem comum, enaltecendo a união dos povos, a igualdade das raças. Jamais o racismo do Conde de Gobineau e do nazista Alfred Rosenberg encontrou guarida no imenso coração de Walt Whitman, do qual saíram estas palavras:
“Multidões de homens e mulheres, com seus trajes habituais, como sois curiosos para mim!... Eu também sou um da massa... Todos os homens e mulheres que vejo são iguais a mim”.
Anunciador de uma humanidade igualitária, sem ódios, sem preconceitos, ele dizia ser o espírito de Deus irmão do seu, vendo almas idênticas à sua em qualquer pessoa. Aconselhava todos a nunca se curvarem diante dos que se julgam superiores, pois ninguém é superior a ninguém. Todos, sem exceção, nasceram da generosa Terra, foram gerados pelo seu ventre fecundo. O amor de Walt Whitman à mãe Terra está expresso nestes versos:

“Dê a mim o teu sorriso, Terra de brisa fresca!
Terra das árvores fluidas, adormecidas!
Terra dos últimos raios do poente!
Terra das montanhas encapuzadas de brumas!
Terra do jorramento vítreo da lua cheia, tingida de azul!”

Na poesia de Walt Whitman os pontos de exclamação se multiplicam, constituem a prova do seu entusiasmo, do seu afeto profundo por todas as maravilhas da natureza. Há eloquência farta em Leaves of Grass, mas eloquência sem retórica, tão espontânea, tão natural como água pura, cristalina, a fluir de uma fonte.
Antes do brasileiro Raul de Leoni, o norte-americano Walt Whitman sonhou um cristianismo diferente. O cristianismo de Walt é gêmeo daquele que Leoni descreveu neste soneto:

“Sonho um cristianismo singular,
Cheio de amor divino e prazer humano,
O Horto de Mágoas sob um céu virgiliano,
A beatitude com mais luz e com mais ar...

Um pequeno mosteiro em meio de um pomar,
Entre loureiros-rosa e vinhas de todo o ano,
Num misticismo lírico, a sonhar
Na orla florida e azul de um lago italiano...

Um cristianismo sem renúncia e sem martírios,
Sem a pureza melancólica dos lírios,
Temperado na graça natural...

Cristianismo de bom-humor, que não existe,
Onde a Tristeza fosse um pecado venial,
Onde a Virtude não precisasse ser triste...”

Aliás, Walt Whitman saudou o Brasil, na sua poesia cheia de calor, aberta, livre como são livres as ondas dos oceanos e os pássaros nas alturas:

“Bem-vindo sejas, irmão brasileiro!
Teu amplo lugar está pronto.
Um sorriso te enviamos do Norte, e
Mãos carinhosas, uma urgente saudação,
                       plena de sol!”


Infelizmente, no Brasil, nem sempre Walt Whitman foi bem compreendido. Num manual de autoria coletiva, por exemplo, no volume Literatura estrangeira, publicado pela editora FTD em 1931, esse resplandecente vulto da literatura universal é mostrado como “Vitor Hugo de segunda zona”, “poeta dos mais estapafúrdios”, “escritor pagão ainda mais cabalístico que Edgard Poe”, dotado de “luxúria mística, imitada depois, senão piorada, por Sherwood Anderson.” Após ler este aglomerado de asneiras, eu me lembrei da seguinte frase de um filósofo:
“A única coisa que nos pode dar a ideia do infinito é a estupidez humana”.

_______________________

Escritor e jornalista, Fernando Jorge é autor do livro Se não fosse o Brasil, jamais Barack Obama teria nascido, cuja 6ª edição foi lançada pela Editora Novo Século
 

sábado, 19 de outubro de 2019

A VITÓRIA DO QUADRUPIDE


No ano de 1955, o eleitorado de Jaboatão, em Pernambuco, elegeu vereador um bode. O animal chamava-se Cheiroso e teve 460 votos, o dobro do que necessitava um cidadão daquele município para se eleger seu representante. Três anos depois, candidato à Câmara dos Vereadores de São Paulo, o rinoceronte Cacareco foi o mais votado. Em seguida, decorridos vários anos, o macaco Tião, do Jardim Zoológico do Rio de Janeiro, teve a sua candidatura fictícia lançada pelo também fictício PBB (Partido Bana­nista Brasileiro). E há pouco tempo, no Balneário Camboriú, de Santa Cata­rina, um cachorro de rua, o Sorriso, tornou-se candidato a deputado. O seu comitê de propaganda era dirigido pelo jornalista Nagel de Mello...
O eleitor desses lugares, bastante desiludido com a política, fez bem em votar num bode, num rinoceronte, num macaco e num cachor­ro. Votos do protesto, da revolta.
            É melhor eleger um bode do que certos cidadãos da nossa infeliz República. Lá no Nordeste o sertanejo costuma dizer:
            “Deus te dê o que deu ao bode: catinga, barba e bigode.”
Mas é mil vezes preferível o fedor do bode, a sua catin­ga, do que o cheiro nauseabundo da alma dos nossos políticos corruptos. Um esgoto furado não fede tanto como a alma podre desses canalhas.
É preferível votar num rinoceronte do que em certos fulanos da nossa infeliz República, porque ele, o rinoceronte, mamífero de pele espessa e dura, não sabe roubar. sabe roncar e comer capim. Além ser muito perigoso, esse bicho nunca meteu as suas patas no orçamento federal e o lesou.
É preferível votar num macaco do que em certos sujeitos da nossa infeliz República, porque o macaco, se sabe brincar, guinchar, pular de galho em galho, comer banana, fazer caretas, por outro lado não sabe trair, mentir e apoderar-se do dinheiro público, a fim de o esconder nos bancos da Suíça e nos paraísos fiscais. Viva pois o macaco e as suas macaquices! 
Abaixo o político corrupto e as suas canalhices! É preferível votar num cachorro do que em certos políticos cachorros da nossa infeliz Republica, porque ele, o cachorro, como disse Victor Hugo, é “a virtude transformada em animal”, e o político corrup­to é a podridão mais asquerosa transformada em gente. Aliás, chamar um des­ses crápulas de cachorro equivale a xingar os cães.
A safadeza de dezenas dos nossos políticos gerou estas palavras de Rui Barbosa:
“De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto.”
                Quando o povo decidiu votar nos animais evocados neste bate-papo, pelo menos não apoiou os patifes que ganharam milhões com obras superfaturadas. Juro, amigo leitor, prefiro ouvir os berros do bode, os bramidos do rinoceronte, os assobios do macaco, os uivos do cachorro, do que as palavras cínicas dos nossos políticos salafrários, exímios na arte de mentir, de enganar, de roubar, de afivelar no rosto a máscara da hipocrisia.
            Os fariseus da política brasileira falam como moralistas e agem como ladrões. Se exibissem no rosto as suas verdadeiras naturezas - a imundice de suas almas - os nossos estômagos ficariam embrulhados, vomitaríamos de nojo.
_______________________

Escritor e jornalista, Fernando Jorge é autor do livro As lutas, a glória e o martírio de Santos Dumont, lançado pela HaperCollins