Em
1966 estive com Carlos Drummond de Andrade inúmeras vezes e numa dessas
ocasiões ele me disse, alegre:
-Sinto-me
realizado, por causa de um filme.
Explicou,
vendo a curiosidade no meu olhar:
-Assisti
ao filme O padre e a moça, do
Joaquim Pedro de Andrade, no qual aparecem Paulo José, Helena Ignez, Mário
Lago, Fauzi Arap.
-E
como é o enredo desse filme?
-Mostra
um padre que chega a uma cidade
atrasada do interior de Minas e que fica perturbado pela beleza de Helena Ignez. O Glauber Rocha elogiou muito O padre e a moça, assegurando que o seu tema é digno de um Luís Buñuel, o genial diretor do filme El perro andaluz.
Drummond
prosseguiu, após ligeiro silêncio:
-Agora
você vai compreender o motivo da minha euforia. O padre e a moça foi inspirado no meu poema “Negro amor de rendas
brancas”.
Em
seguida o poeta declarou, pausadamente:
-O
Joaquim é filho do nosso amigo Rodrigo Melo Franco de Andrade, o homem que me
apresentou a você. Ele é afilhado do Manuel Bandeira e em Congonhas do Campo,
durante um ano, fez parte da equipe de restauração das sessenta e seis
esculturas em madeira dos Passos da Via Sacra, da autoria do Aleijadinho e dos
seus auxiliares.
Maria
Julieta nos serviu um cafezinho e Drummond continuou a informar:
-No
ano passado, em novembro, o Joaquim foi preso com o Glauber Rocha, o Flávio
Rangel, o Antônio Callado, o Márcio Moreira Alves e o Carlos Heitor Cony, por
ter participado de um protesto contra o regime militar, quando ocorreu, no
Hotel Glória do Rio de Janeiro, a reunião dos países membros da Organização dos
Estados Americanos. Protesto justo, pois o regulamento da OEA proibia a
realização de conferências nos países não democráticos.
Perguntei
a Drummond se ele se interessava pela política e se chegou a formular, neste
sentido, algum protesto. Refletiu um pouco e respondeu:
-Em
1945 me aproximei do Partido Comunista, mas a rigor jamais quis ingressar num
partido, por achar que pertencer a qualquer grêmio político nos tira a
liberdade individual. Devido a este cerceamento, o Oswald de Andrade e a Rachel
de Queiroz largaram o partido do Luís Carlos Prestes. Vou evocar para você um
episódio curioso. No mês de abril daquele ano de 1945 – o ano da queda da
ditadura do Getúlio – registrei num diário a minha conversa com o Prestes, no
presídio onde ele estava, depois de ser condenado pelo Tribunal de Segurança
Nacional.
-Conversa
rápida?
-Não,
comprida, mas só citarei os pontos da conversa que causaram o desmentido do
Prestes.
-Desmentido?
-Sim,
pois lhe enviei uma cópia datilografada do registro da nossa conversa. Ele a
leu e irritou-se, soube por fonte idônea. Negou que houvesse classificado como
“revolução” o movimento de outubro de 1930, responsável pela vitória do
Getúlio. Garantiu nunca ter feito a seguinte previsão: Dutra, na presidência da
República, seria pior do que Vargas, como este foi pior que o atrabiliário
Artur Bernardes. Rotulou de “lamentável equívoco” o fato de eu o chamar de
“católico”. Ele, Luís Carlos Prestes, enfatizou, não era da igreja do papa Pio
XI. Testemunha de tal fato: o doutor Heráclito Sobral Pinto, seu advogado. E
também me desmentiu porque divulguei esta sua opinião: revelava-se mais
democrática a candidatura do brigadeiro Eduardo Gomes à presidência da
República do que a do general Eurico Gaspar Dutra ao posto supremo.
Algo
nervoso, Drummond fitou-me e sustentou:
-Fernando,
assim como você está registrando tudo que digo num caderninho, fiz a mesma
coisa no decorrer da conversa com o Prestes. Sou incapaz de adulterar a
verdade. Fiquei surpreso e chateado, embora eu o respeite por sua vida de
combates incessantes e de malogros honrosos. Aliás, dois amigos meus, Célia Neves
e Oswaldo Alves, presenciaram o nosso encontro e após lerem a transcrição da
conversa, acharam que a reproduzi de modo fiel.
Emiti
este juízo:
-A
retentiva do Prestes o traiu, ele ignora que não podemos confiar cegamente em
nossa memória. Machado de Assis chamou-a de “rua da traição, cheia de becos
escuros”.
Drummond
concordou e fui avante:
-Agora declamarei para você uns versos sobre a
memória, do poeta italiano Vincenzo Cardarelli, falecido em 1959.
Ergui-me
da cadeira (poesia deve ser declamada de pé) e abri mais a voz:
“I ricordi, queste
ombre troppo lunghe
del nostro breve corpo,
questo strescico di
morte
Che noi lasciamo
vivendo”.
A
pedido de Drummond, traduzi os quatro versos:
“As lembranças, estas
sombras tão longas
do nosso breve corpo,
este rastro da morte
que nós deixamos
vivendo”.
Pensativo,
com ar distante, e como se fosse o complemento da poesia do italiano, Drummond
recitou:
“Itabira é apenas uma
fotografia na parede,
Mas como dói!”.
Eu
soltei esta frase:
-A
sombra dos dias perdidos, ombra dei di
perdutti, conforme a expressão de D’Annunzio, sempre nos entristece.
Tive
a impressão, porém não posso afirmar, que uma pequenina, discreta lágrima,
deslizou pelo rosto pálido e delicado de Drummond...