Numa
das minhas conversas com Carlos Drummond de Andrade, no seu apartamento
carioca, eu frisei:
-Poeta
mineiro que admiro muito, e o considero um dos maiores do Brasil, é o Alphonsus
de Guimaraens.
Imediatamente,
com a maior espontaneidade, Drummond iniciou uma declamação:
“Quando
Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na
torre a cismar...
Viu uma
lua no céu,
viu outra
lua no mar.
No sonho
em que se perdeu,
banhou-se
toda em luar...
Queria
subir ao céu,
queria
descer ao mar...
E no
desvario seu,
na torre
pôs-se a cantar...
Estava
perto do céu,
estava
longe do mar...
E como um
anjo pendeu
As asas
para voar...
Queria a
lua do céu,
Queria a
lua do mar...”
Antes
de Drummond concluir, eu finalizei:
“As asas
que Deus lhe deu
Ruflaram
de par em par...
Sua alma
subiu ao céu,
Seu corpo
desceu ao mar...”
O
poeta de Itabira aplaudiu esta jóia do místico autor do Setenário das dores da Nossa Senhora. Em seguida comentou:
-A
poesia de Alphonsus de Guimaraens é harpejo, música delicada, etérea, som
evanescente. Nenhum poeta brasileiro, como o “Rouxinol das Alterosas”, falou do
amor com tanta suavidade. Vou recitar para você umas estâncias desse mineiro
que viveu em Mariana, imerso na pobreza e às vezes nas brumas do álcool.
De
olhos semi-cerrados, sem gestos amplos, Drummond deixou sair isto da sua boca
de lábios finos:
“O amor
tem vozes misteriosas
No
coração implume...
Como são
cheirosas as primeiras rosas,
E os primeiros
beijos como têm perfume!
O amor
tem prantos de abandono
No
coração que morre...
As folhas
tombam quando vem o outono
E ninguém
as socorre!
O amor
tem noites, noites inteiras
De
agonias e de letargos...
Que
tristeza têm as rosas derradeiras,
E o último
beijos como são amargos!”
Quando
ele terminou de recitar esta poesia do livro Pastoral aos crentes do amor e da morte, eu não me contive:
-Ah,
que coisa linda Drummond, que coisa linda! Parece melodia vinda do além, tocada
por um anjo de asas trêmulas.
A
face comovida do itabirano traia sua emoção. Depois garanti:
-Mas
Minas Gerais ainda não fez justiça a um grande poeta.
O
autor de Amar se aprende amando me
interrogou com os olhos. Afirmei:
-Este
grande poeta você conhece. Só que é anônimo, não publica os seus versos em
livros, jornais e revistas.
-Quem
é?
-O
povo mineiro. Ouça estas quadras dele.
Levantei-me,
e com voz forte, enfática, passei a declamar:
“Como as
flores nascem
A minha
Líria nasceu,
Como as
flores morrem,
A minha
Líria morreu...
Como pode
o peixe vivo
Viver
fora da água fria?
Como
poderei viver
Sem a tua
companhia?
Maria me
deu um cravo,
Sexta-feira
da Paixão,
Eu pus o
cravo no peito,
Maria no
coração...
Passe o
tempo que passar,
Viva os
anos que viver,
Ande eu
por onde andar,
De ti não
hei de esquecer.”
Sorrindo,
Drummond elogiou-me por eu ter decorado estas quadras populares mineiras. E
perguntou:
-Você
conhece quadras mineiras humorísticas?
-Confesso
que não, só memorizei quadras românticas.
Sempre
de modo sóbrio, Drummond recitou três quadras alegres de Minas:
“Meu pai
se chama Caco,
Minha
mãe, Caca Maria,
Oh, meu
Deus, com tanto caco,
Sou filho
da Cacaria!
O seio de
siá Janoca,
Eu atesto
porque vi,
É que nem
leite coalhado,
Não sei
como não o comi!
A rua da
Venda Nova
É comprida
e sem largura,
Toda
menina de lá,
Tem perna
de saracura.”
Conforme
Drummond me explicou, há várias espécies da ave saracura e o que a caracteriza,
além do canto quase plangente, é o colorido vermelho-rubro das suas pernas
feias. Dando prova do seu conhecimento da literatura de Minas Gerais, ele se
referiu a três escritores mineiros que citaram a saracura: Bernardo Guimarães,
em O seminarista; Afonso Arinos, em Os jagunços, e Guimarães Rosa, em Sagarana.