No ano de 1965 apareceu o romance Falência das elites, assinado pela
Adelaide Carraro, mas na verdade escrito pelo jornalista Hélio Siqueira, dos
Diários Associados do Assis Chateaubriand. Eu redigi e assinei o texto das
orelhas do livro, que narra o drama de um médico negro, visto com nojo,
repulsa, num círculo de pessoas brancas da “elite”. A rigor, a obra é uma
denúncia contra o preconceito racial.
O jornal O
Globo, do Rio de Janeiro, informou na edição do dia 4 de abril de 1965, que
por ordem do Ministério da Justiça, agentes do Serviço de Ordem Política e
Social apreenderam o romance Falência das
elites, considerado subversivo. Esta notícia reproduziu a minha opinião
sobre o livro. Ao lê-la, disse a mim mesmo: vou ser processado pelos militares
da Linha Dura, os “gorilas”.
Assim aconteceu. Fui intimado a ir depor numa
sala de um edifício do Pátio do Colégio, da capital paulista. Dois soldados de
capacetes brancos, munidos de metralhadoras, levaram-me num jipe até lá. Ao
entrar na sala, escoltado pelos dois soldados como se eu fosse um prisioneiro
de guerra, ouvi a seguinte pergunta do editor do livro, o judeu búlgaro Eli
Behar, de pé junto à porta, pálido como quem se acha prestes a desmaiar:
-Fernando, vamos ser fuzilados?
Eu quis saber:
-Por quê?
Respondeu, cada vez mais pálido:
-Porque na Bulgária os réus iguais a nós, em
casos desse tipo, são logo fuzilados.
Sorrindo, tentei acalmá-lo:
-Espero que não. O Brasil é diferente da
Bulgária...
Cercado por soldados fortemente armados,
sentei-me diante de um coronel do Exército, em cujo peito reluziam as suas
condecorações. Ao lado dele, um escrivão e o promotor Dragamiroff, da Justiça
Militar. O coronel, homem alto, imponente, de faces rubicundas, pronunciou esta
frase:
-Fernando Jorge, o senhor, que escreveu um
livro famoso sobre o Aleijadinho, faz de modo claro o jogo dos comunistas.
-Eu? Não estou entendendo.
-O romance Falência
das elites, elogiado pelo senhor, garante que há preconceito de raça no Brasil.
Tal preconceito não existe em nosso país. Somos a maior democracia racial do
mundo, como declarou o seu colega Gilberto Freyre. Os que sustentam que há aqui
aversão aos negros são os marxistas-leninistas, a fim de forçar o povo a se
revoltar contra nós, os militares, as autoridades constituídas, por fecharmos
os olhos diante desse preconceito.
Fiquei estupefato ao ouvir estas palavras, mas
reagi:
-Senhor coronel, me desculpe, no Brasil existe
esse preconceito.
-Não há, se existe quero que o senhor prove –
replicou de cara brava.
-Eu não tenho as provas aqui, mas é um fato de
conhecimento geral.
-Repito – disse o coronel, irritado – não há
esse preconceito, é um plano diabólico dos marxistas-leninistas para jogar o
povo contra nós, os militares, as autoridades constituídas. Prove a existência
desse preconceito, eu exijo!
Os olhos do militar pareciam lançar fagulhas.
Respondi, esforçando-me em me manter tranquilo:
-Senhor coronel, permita que eu me concentre,
para me lembrar de uma prova e apresentá-la.
Ele respondeu, com voz enérgica:
-Autorizo o senhor a pensar.
Autorizado a pensar (que beleza!), eu me
concentrei, buscando a tal prova. Junto de mim, branquíssimo, quase a desmaiar,
o editor Eli Behar me olhava aflito, como alguém prestes a morrer sob uma
rajada de metralhadora. De súbito, a minha boa memória me ajudou:
-Senhor coronel, se o senhor pedir a qualquer
desses soldados para ir apanhar a prova, poderei mostrar como realmente existe
o preconceito de raça no Brasil.
E apontei para um soldado com cara de buldogue
e corpão de orangotango.
-Não – replicou o coronel – não precisa ser
este soldado. Chamarei o meu ajudante-de-ordens.
Tocou uma campainha e logo apareceu um militar
baixinho, que lhe fez continência. Solene, empertigado à maneira de feroz agente
da Gestapo na Alemanha nazista, o coronel me encarou, determinando:
-Ordeno-lhe que diga o que quer.
-Peça ao seu ajudante-de-ordens, por favor, que
vá às sedes dos principais jornais de São Paulo e traga exemplares dessas
folhas do dia 10 deste mês.
O coronel deu a ordem, o auxiliar lhe fez outra
vez continência e afastou-se. Suspenso o interrogatório, pensei: se a minha
memória falhou, estarei frito.
Depois de quase duas horas, o
ajudante-de-ordens surgiu com um pacote. Pedindo licença, colocou o embrulho em
cima da mesa do coronel. Este, sempre pomposo, dirigiu-se a mim:
-Aí estão os jornais. Ordeno, agora, o senhor
prove que existe realmente preconceito racial no Brasil.
Abri o pacote, o meu coração batia apressado, e
examinei o primeiro jornal. Era o Diário
da Noite. Rápido, achei nele a notícia sobre um casal de advogados, marido
e mulher, impedidos de se hospedarem no Hotel Esplanada, devido ao fato de
serem negros. Então, por causa disso, o casal resolveu processar os donos do
hotel, evocando a Lei Afonso Arinos, que proíbe o preconceito racial. Dobrei o
jornal e o exibi:
-Aqui está a prova, senhor coronel.
Ele ficou surpreso, mas não quis se dar por
vencido:
-Trata-se de um episódio isolado. Continuo a
afirmar, não existe preconceito racial no Brasil. Apresente-me outra prova.
Solicitei, com voz suave:
-O senhor permite que eu me concentre?
Vacilou um pouco, mas consentiu:
-Autorizo o senhor a pensar.
Autorizado pela segunda vez a pensar (que
beleza!), concentrei-me e falei, após dois minutos:
-Senhor coronel, não conheço nenhum almirante
da nossa gloriosa Marinha de Barroso e Tamandaré que é preto retinto. É mais
uma prova.
Soltei estas palavras de cabeça baixa, sem
fitar o seu rosto, e ia dizer, senhor coronel, também não conheço nenhum
general do nosso glorioso Exército de Caxias e Osório que é negro como o Pelé.
Ia dizer, mas desisti, silenciei, pois quando ergui a cabeça ele me olhava com
a cara de um criminoso sádico, bebedor de sangue.
No fim do interrogatório, após eu assinar um
documento, o coronel rugiu:
-Levante-se. Ordeno que o senhor se retire.
Aliviado, fui embora. Ficou lá, tremebundo,
quase a se derreter como manteiga aquecida, o Eli Behar, editor do “livro
subversivo” Falência das elites, da
Adelaide Carraro.
Jô Soares ouviu tudo isto no seu programa, ao
me entrevistar pela primeira vez (entrevistou-me duas vezes). Depoimento
prestado por mim, no meu lar, à Comissão Nacional da Verdade, estando presente
a senhora Maria Luci Buff Migliori, de Brasília, consultora dessa comissão.
Aliás, o preconceito
racial continua a existir no Brasil. Há pouco tempo o professor de economia
Manoel Luiz Malaguti, da Universidade Federal do Espírito Santo, confessou aos
seus alunos que se tivesse de “escolher entre um médico branco e um negro,
escolheria o branco”. O Ministério Público Federal instaurou, contra esse
racista, procedimento investigativo criminal (O Globo, 6-11-2014).