Conheci Carlos Drummond de Andrade no Rio de Janeiro, na época em que ele era funcionário do Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN). Quem me apresentou ao famoso filho de Itabira foi Rodrigo Melo Franco de Andrade (1893-1969), mineiro como o poeta e que dirigia este órgão. Drummond me ofereceu, com dedicatória, um exemplar do livro A rosa do povo, publicado em 1945, e eu lhe dei a primeira edição da minha obra sobre o Aleijadinho, na qual reproduzi o seu poema em louvor do nosso genial estatuário, cujo fecho é assim:
“Era uma vez um Aleijadinho,
não tinha dedo, não tinha mão,
raiva e cinzel lá isso tinha,
era uma vez um Aleijadinho,
era uma vez muitas igrejas
com muitos paraísos e muitos infernos,
era uma vez São João, Ouro Preto,
Sabará, Congonhas,
era uma vez muitas cidades,
e um Aleijadinho era uma vez”
Conversei com o poeta e antes de me despedir, ele me deu o seu telefone e o seu endereço, no bairro de Copacabana. Rodrigo Melo Franco de Andrade, de quem fui grande amigo, depois comentou:
-Fernando, o Drummond gostou de você, pois não costuma dar o seu telefone e o seu endereço.
A partir daí ficamos amigos. Sempre o visitava, quando ia ao Rio de Janeiro. E embora tivesse fama de ser um homem seco, de poucas palavras, Drummond, diante de mim, algumas vezes abriu-se em confidências. Certa ocasião me confessou:
-Julgam-me, como poeta, um cerebral, porém no fundo sou um emotivo, um nostálgico do passado. Sinto saudades da minha infância em Itabira, dos meus colegas do Grupo Escolar Dr. Carvalho Brito, das aulas particulares do professor Emílio Magalhães. Segundo o botânico alemão Martius, o topônimo Itabira significa “pedra fulgurante, chamejante”. Pois bem, caro amigo, ela é uma pedra que aquece o meu coração.
Vi os olhos azuis de Drummond se umedecerem. E pude contemplar o profundo amor que havia entre aquele homem retraído, magro, de testa alta – testa de intelectual – e a sua filha Maria Julieta, aliás parecidíssima com ele. Ambos exibiam o mesmo rosto, o mesmo olhar. Maria Julieta o beijava e o abraçava, volta e meia. E em 1987, no dia 5 de agosto, essa filha querida faleceu, vítima do câncer. Logo depois, no dia 17 do mesmo mês, Drummond foi ao encontro de Deus e de Julieta...
A minha intimidade com o poeta me permitia ser ousado. Um dia eu lhe disse:
-Qual é o Drummond verdadeiro? O poeta ou o prosador? Como poeta você viola as leis da sintaxe e como prosador as respeita, não se atreve a ser um gramaticida.
Sorrindo, ele respondeu:
-Você é terrível, Fernando. Os dois são sinceros, o poeta e o prosador. Se a poesia e a prosa fossem iguais, de naturezas idênticas, uma não se distinguiria da outra.
Autorizou-me a colocar esta minha irreverência no meu romance satírico O grande líder, atualmente na sexta edição.
Numa das vezes em que o visitei, eu quis saber:
-Você gostaria de escrever um romance?
O rosto de Drummond iluminou-se e ele se expandiu:
-Adoraria ser o autor de um romance fantástico, com a história de um elefante voraz, insaciável, que devora todos os dias, na hora do almoço, um boi, ou uma baleia, ou um hipopótamo. Até já escolhi o nome desse bicho: Geraldão. Devido ao seu apetite, fica do tamanho daquele morro de Ouro Preto, o Itacolomi, cuja altura é de 1.797 metros. Geraldão ambicionava namorar a elefanta Claudete e não conseguia, por causa do seu tamanho. E além disso, ao fazer cocô, emporcalhava tudo...
Nunca poderei me esquecer da gargalhada do Drummond, quando me contou esta história. Coisa rara, a gargalhada, pois era um homem discreto, que apenas sorria de leve. Ele me transmitiu a impressão, ao narrar a história do tal elefante, de ter voltado à sua infância, na longínqua Itabira de 1910....
Contarei numa segunda crônica um episódio curioso, desconhecido, da vida do meu amigo Carlos Drummond de Andrade.