segunda-feira, 4 de maio de 2020

OS FILMES DE CARLITOS QUE DRUMMOND AMOU



Em 1977 eu estava com Drummond no seu apartamento, vendo com ele um programa de televisão. Riamos a valer, pois era programa de boa qualidade. De repente entrou na sala a sua filha, que lhe disse:
-Papai, dois jornalistas querem agora entrevistar o senhor.
Drummond respondeu:
-Diga aos dois que não posso atendê-los, porque estou assistindo com um amigo ao programa “Os Trapalhões” do Renato Aragão, na TV Globo.
Maria Julieta riu e afirmou:
-Você é uma criança, pai.
Após o programa, Drummond proferiu estas palavras:
-Admiro muito o Renato Aragão. É um cômico de talento, nascido em Sobral, no Ceará, e formado pela Faculdade de Direito daquele estado. Segundo me informaram, ele se tornou advogado do Banco do Brasil, mas logo quis virar cômico. Eis aí o que se chama “a força irresistível de uma vocação”.
Em seguida o poeta elogiou dois filmes do cearense, Adorável trapalhão, de 1968, e Simbad, o marujo trapalhão, de 1976:
-Gostei desses filmes, causaram-me, sem conseguir reprimi-las, gostosas risadas. E acho que o inglês Charles Chaplin é um dos inspiradores do nordestino Renato Aragão, pois há visível influência do Carlitos nos gestos e no jogo fisionômico do nosso artista. Aliás, Chaplin sempre foi um dos meus ídolos. O escritor Eduardo Frieiro também é fã do Renato, vive enaltecendo os seus filmes.
Cinco anos depois, no dia 23 de março de 1982, ao visitar Drummond, encontrei-o tristonho:
-Qual é a causa dessa melancolia?
O poeta explicou:
-Morreu hoje um excelente amigo, o Eduardo Frieiro, fundador da Sociedade Editora Amigos do Livro, que publicou em Minas, no ano de 1934, o meu Brejo da almas. Frieiro, como você não ignora, é autor de três obras saborosas: A ilusão literária, O diabo na livraria do cônego e Feijão, angu e couve, esta última um admirável ensaio sobre a culinária dos mineiros. Eu sentia muita pena do Eduardo, pois ele ficou cego no fim da sua vida. Uma tragédia para um homem que era ledor voraz e fervoroso cinéfilo, apaixonado pelos filmes de Carlitos.
Então Drummond me contou: o extinto, filho de um pedreiro e de uma operária, só completara o curso primário, mas como esforçado autodidata logrou obter vasta cultura humanística. Lia desembaraçadamente obras em latim, inglês, francês, espanhol e italiano. A convite de Juscelino Kubitschek, quando este exerceu o cargo de governador de Minas, o escritor Eduardo Frieiro dirigiu e organizou, ao longo de dez anos, a Biblioteca Pública Estadual Luís de Bessa.
Depois de ouvir estas informações, eu observei:
-A desgraça do Eduardo Frieiro me traz à memória duas outras desgraças, a do poeta, jornalista e escritor Lúcio de Mendonça, o verdadeiro fundador da Academia Brasileira de Letras, que em 1904 perdeu a vista, tendo ido à Europa para consultar oftalmologistas da Itália e da Alemanha, e a desgraça do seu irmão Salvador de Mendonça, também escritor, vítima da cegueira como ele, e que passou os últimos anos de vida na sua chácara da Gávea, cultivando rosas.
Drummond me elogiou, por eu expor tais minúcias. Banquei o modesto:
-São coisinhas, qualquer pessoa é capaz de memorizar esses quiriquiquis.
Ele me cumprimentou, rindo:
-Parabéns, gostei dos quiquiriquis.
A curiosidade me impeliu a perguntar:
-Você é cinéfilo, fã ardente dos filmes de Carlitos, como foi o seu amigo Eduardo Frieiro?
-Sim, e desde mocinho. Amei, por exemplo, o A dog’s life (“Vida de cachorro”), filme do Chaplin de 1918. Já viu este filme?
-Confesso que não.
-A fita mostra o vagabundo Carlitos salvando a vida de um cachorro prestes a ser estraçalhado por outros cães. Ele o esconde nas suas calças e penetra num salão de baile, onde uma cantora é explorada pelo dono desse salão. Impressionou-me, além das situações cômicas, a dinâmica do filme, realizado na época em que o cinema não dispunha, como hoje, de tantos recursos técnicos.
Outro filme de Carlitos emocionou Drummond de modo profundo: The kid (“O garoto”). Assistido em 1922, no tempo em que ele, com vinte anos, obteve um prêmio de cinquenta mil-réis da revista Novella Mineira, de Belo Horizonte, pelo conto “Joaquim do telhado”.
-Comoveu-me ao ver a película – revelou o poeta – o menino abandonado, Jackie Coogan, que o vidraceiro Carlitos protege e ama como se fosse um filho. É mistura de comédia e drama, de risos e lágrimas.
Drummond ofereceu-me um pedaço de chocolate e prosseguiu:
-No ano de 1925, o da conclusão do meu curso de Farmácia e do meu casamento com a Dolores Dutra de Morais, eu...
Interrompi o poeta:
-Nesse ano você fundou com Emílio Moura o órgão do Modernismo mineiro, A Revista.
-Exato, e nesse ano de 1925 vi o filme The gold rush (“Em busca do ouro”), do Chaplin, uma comédia inspirada num acontecimento trágico, na expedição de um grupo de imigrantes na Sierra Nevada dos Estados Unidos. Presos no gelo, famélicos, os participantes dessa expedição foram obrigados a devorar os próprios sapatos e os cadáveres insepultos dos seus companheiros.
O itabirano, continuando, falou sobre o filme The circus (“O circo”), que custou dois anos de trabalho a Chaplin:
-Fui vê-lo em 1927, antes de iniciar a minha carreira de funcionário público na Secretaria da Educação de Minas Gerais. É o derradeiro filme mudo de Charlitos. A sua parte final me emocionou.
E Drummond o descreveu:
-O vagabundo Carlitos, perseguido como ladrão, e na ânsia de escapar da policia, consegue entrar num circo, onde se transforma no artista principal. Ele se apaixona pela amazona do circo, maltratada pelo patrão. Todavia, um jovem e belo equilibrista desperta o amor da moça, após o vagabundo ajudá-la a melhorar de vida. Grata ao vagabundo, ela propõe ir embora com ele, mas Carlitos não deseja perturbar o idílio dos dois e fica sozinho no picadeiro do circo, quando a amazona e o equilibrista partem.
Drummond concluiu:
-Ao ver a cena, senti como é pungente o amor incompleto, frustrado, e como é angustiante a solidão das almas sensíveis que contemplam o esfacelamento dos seus sonhos.
Valendo-me do assunto, eu indaguei:
-Caro amigo, conhece o pensamento do escritor espanhol Severo Catalina, que viveu no século XIX, sobre a solidão?
Ele fixou os miúdos olhos azuis em mim, com um negativo meneio de cabeça, e caprichei no meu castelhano:
Quien no ha vertido lágrimas en la soledad, no sabe cuáles son las lágrimas verdaderamente amargas. La soledad es el egoísmo supremo del dolor.”
-Concordo – declarou Drummond – e em homenagem à nossa amizade, vou recitar quatro versos do meu livro Poesias, de 1942.
De maneira lenta, sóbria, os versos fluíram da sua boca de lábios finos:

“Ó solidão do boi no campo,
homens torcendo-se calados!
A cidade é inexplicável!
e as casas não tem sentido algum”.

Soltei esta frase:
-Você exprimiu o inexprimível.
Os olhos de Drummond cintilaram e o meu amigo acrescentou:
-Fernando, ainda a propósito de Carlitos. Fiquei fascinado, após a Revolução de 1930, pelo filme City lights (“Luzes da cidade”), no qual ele, pequeno vagabundo, socorre uma vendedora de flores cega. Nesse filme o cômico genial salva a vida de um magnata bêbado, excêntrico e imprevisível. Só nas horas em está no porre, o ricaço é carinhoso com o pequeno vagabundo. Tocante, levou-me às lágrimas, o desfecho, a última cena dessa joia do cinema.
Mais dois filmes de Chaplin receberam louvores do poeta: Modern times (“Tempos modernos”), de 1936, e The great dictator (“O grande ditador”), de 1940. No primeiro Drummond enxergou eficiente sátira contra o regime capitalista, o trabalho mecânico, brutal, desumano, e no segundo uma premonição, uma crítica aniquiladora contra os regimes de arbítrio, de natureza nazi-facista.
-Admiro tanto O grande ditador – assegurou – que guardei um trecho do discurso de Carlitos, pronunciado no fim da película. Quero ler para você o texto.
O autor de Os dias lindos se ergueu e tirou de uma escrivaninha um papel. Foi lendo:
“Soldados! Não vos entregueis a esses brutos (os ditadores), homens que vos desprezam, vos escravizam, governam vossa vida, dizendo-vos o que deveis fazer, sentir e pensar. Eles vos matam de fome, dão-vos roupa ordinária, tratam-vos como ao gado e vos aproveitam como carne de canhão. Não vos entregueis aos inimigos do homem, homens máquinas, com cérebros de máquinas e coração de máquinas. Vós não sois máquinas! Vós sois homens! Tendes amor à humanidade em vossos corações! Não odieis! Somente aquele que não é amado, odeia! Soldados! Não luteis pela escravidão, lutai pela liberdade!”
Aplaudi, impulsionado pelo entusiasmo:
-Drummond, você leu tão bem que me deu impressão de ser o próprio Carlitos no filme O grande ditador.
E indaguei, antes de comer outro pedaço de chocolate:
-Como é o conto que em 1922 fez você ganhar o prêmio de cinquenta mil-réis?
Ele especificou:
-Os cinquenta mil-réis mais comoventes da minha vida. A revista Novella Mineira, onde ele apareceu, era do Aníbal Matos, fluminense de Vassouras, e do Oswaldo Araújo, nascido no meu estado, em Dores do Indaiá. Aliás, sinto um afeto especial por este sonoro nome, Indaiá, da língua tupi. Significa palmeira. O conto “Joaquim no telhado” é a história de um sapateiro que depois de ter enlouquecido, passa os dias na cobertura da sua casa, sempre a filosofar...

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Escritor e jornalista, Fernando Jorge é autor do livro Se não fosse o Brasil, jamais Barack Obama teria nascido, lançado pela Editora Novo Século

Um comentário:

Anônimo disse...

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