domingo, 30 de junho de 2019

Sadio roteiro de vida


A verdadeira bondade me traz à memória uma história narrada por Paderewski, o insigne músico polonês:
-Um dia – conta este músico -, eu estava num famoso restaurante de Viena, quando entrou um pobre para vender fósforos. Oferecia-os às pessoas de todas as mesas, mas ninguém lhe comprava nada. Ao retirar-se, o pobre passou diante de uma mesa sobre a qual havia uma bandeja com este pequeno letreiro: “Para os músicos”. Então, sem qualquer palavra, o pobre depositou uma caixa de fósforos na bandeja e saiu, foi embora.
Concluindo, Paderewski acrescentou:
-Esta cena, que presenciei, colocou em frente dos meus olhos a verdadeira bondade.
Agora, amigo leitor, uma história sobre a tirania e a injustiça.
Certa vez estavam assando, em local ermo, uma ave para o sultão da Pérsia, mas faltava o sal. Um auxiliar do sultão mandou um escravo trazer o sal da aldeia mais próxima.
-Não deixes de pagar o sal – disse o sultão.
E salientou:
-Se você não pagar, isto se tornará um costume, e os habitantes da aldeia ficarão reduzidos à miséria, em curto espaço de tempo.
Aí um amigo do sultão se atreveu a soltar este comentário:
-Mas se o escravo não pagar o sal, o prejuízo da aldeia não será grande.
O sultão explicou:
-No mundo, a tirania e a injustiça começam por uma coisa muito pequena. Observe, se o sultão pegar um fruto do jardim de um dos seus súditos, os escravos, seguindo o mau exemplo, levarão os frutos de todas as árvores desse jardim. E se este mesmo sultão roubar de alguém um ovo, os seus guerreiros roubarão mil galinhas.
Gostou, amigo leitor? Passo a narrar uma história sobre a honradez.
Conta Leon Tolstoi que um camponês deixou cair o seu machado no rio, e por este motivo ficou angustiado, começou a chorar. Ouvindo-lhe o pranto, o gênio das águas lhe exibiu um machado de ouro e quis saber:
-É este o teu machado?
-Não, não é esse – respondeu.
O gênio das águas apresentou um machado de prata.
-Também não é este – disse o camponês.
Nesse momento, o gênio mostrou-lhe o que ele tinha perdido no rio, o machado de ferro.
-É este! – exclamou o homem.
Para recompensar a sua honestidade, o gênio o presenteou com os dois machados: o de ouro e o de prata.
Ao pôr os pés no lar, o camponês descreveu o fato. Imediatamente um dos seus conhecidos desejou imitá-lo: foi à margem do rio, deixou cair o machado e se pôs a chorar. Então o gênio das águas ergueu um machado de ouro e indagou:
-É este o teu machado?
Com os olhos incendiados pela cobiça, o fulano não se conteve:
-É ele, sim!
Querendo castigar o desonesto, o gênio não lhe deu o machado de ouro e nem o de ferro. Este jaz até hoje, todo enferrujado, na parte mais funda do rio...
As três histórias apresentadas neste bate-papo são três eloquentes lições de moral, que correspondem a um digno e sadio roteiro de vida.

sábado, 22 de junho de 2019

DRUMMOND E O “MEDIUM” VINICIUS DE MORAES


Carlos Drummond de Andrade, conforme acentuei, era vítima de sua própria fama. Sentia-se tolhido com o assédio dos seus admiradores. Muitas vezes me confessou:
-Ah, Fernando, que saudade daquela vida livre em Itabira, durante o meu tempo de meninice! Quanta saudade das minhas inocentes caminhadas pela rua Estrela, no bairro da Água Fresca!
E o poeta me falou com carinho das suas andanças itabiranas pelos bairros do Areão, do Moinho Velho e da Abóbora, nomes registrados imediatamente por mim no meu caderninho. Drummond brincou:
-Você, anotando tudo, me dá a impressão de ser um detetive encarregado por um corno de registrar os locais dos encontros da esposa infiel com o amante.
Soltei uma risada e neste momento Maria Julieta entrou na sala:
-Papai, aquele rapaz do Jardim Botânico...
Achava-se ao lado da filha de Drummond um jovem obeso, de fisionomia arredondada como o formato de certas caixas de pizza. Ele se adiantou e disse:
-Mestre, grande poeta!
Drummond não conteve a ironia:
-Estamos num país de mestres e de grandes poetas...
O moço emitiu um protesto:
-Carlos Drummond de Andrade é mesmo um mestre e um grande poeta!
-Obrigado, mas você me vê com lentes de aumento.
-O senhor é gênio, a man of genius, the genius of Brazil! Adoro a sua poesia “Memória”, do livro Claro enigma, publicado em 1951 pela editora José Olympio.
  Piscando a valer os olhos e pondo a mão grossa no peito, o rapaz escancarou a boca de lábios espessos, de onde saía a sua voz estridente como o cacarejar de um galo no cio. Recitou a poesia:

Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.

Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão.

Depois o jovem acrescentou, de maneira solene:
-Mestre Drummond, o poeta Ezra Pound, desencarnado em 1972 na cidade de Veneza, inspirou-se nesta sua poesia, a fim de escrever em português belos versos, recebidos por minha pessoa num transe mediúnico.
Sem demora, diante do espanto de Drummond e do meu, o “médium” gorducho declamou:

Amar o perdido
não deixa confundido
o meu coração,
pois guardei
o teu beijo,
pleno de desejo,
palpitante de emoção.

Luar de Veneza
banha a minha alma,
tira a tristeza,
afugenta a solidão.

Drummond, tenha a certeza,
você é meu irmão!

O rapaz entregou a mim e a Drummond duas cópias da poesia do espírito de Ezra Pound, salientando:
-Ezra me garantiu que estes versos, inspirados como eu disse na poesia “Memória”, do livro Claro enigma, são superiores ao The return que ele gerou.

As finas mãos de Drummond foram beijadas duas vezes pelo rapaz, apesar da relutância do poeta:
-Não, não, por favor!
O beijoqueiro despediu-se e após ir embora, o itabirano pronunciou estas palavras:
-Eu duvido que esse rapaz tenha incorporado o espírito de Ezra Pound. Qual é a sua opinião?
Fui franco:
-Também não sei, mas como já disse, possuo forte mediunidade, manifestada várias vezes. E com você, já aconteceu algum fenômeno mediúnico?
Drummond então me contou que em 1945, dois meses depois do falecimento de Mário de Andrade, ele propôs a Vinicius de Moraes, no apartamento de Fernando Sabino, invocarem o espírito do autor de Macunaima. Vinicius, nessa época, fazia experiências mediúnicas, com a ajuda de Beatriz Azevedo de Mello, a Tati de Moraes, sua primeira esposa. Por este motivo os móveis do seu quarto de dormir se agitavam, produziam barulho.
Os três, Vinicius, Drummond, Fernando Sabino, apagaram as luzes e concentraram-se, para chamar o espírito de Mário de Andrade. Uniram os dedos de suas mãos, sobre modesta mesa. O poeta carioca fechou as pálpebras, estremeceu e começou a escrever numa folha de bloco, na qual foram aparecendo traços incompreensíveis, garranchos. Ligeiro, Sabino substituía a folha, quando esta ficava cheia de rabiscos, mas de repente Vinicius jogou esta frase no papel:
“Direito de morrer de fome.”
Interrogaram o espírito:
-O que significa isto?
Silêncio do desencarnado. Vinicius indagou:
-É o Mário de Andrade?
Resposta lacônica, fixada na folha:
-Não.
Fernando Sabino sugeriu:
-Talvez seja o espírito de um parente do Mário.
Outra resposta lacônica:
-Avô.
O “médium” Vinicius de Moraes, ato contínuo, no fim da experiência, pôs no papel o nome Glorinha e depois outro nome feminino, Norma Leuzinger, uma amiga dele, recém-falecida.
Perguntei a Drummond:
-A morte é o outro lado da vida, como a definiu o poeta Rainer Maria Rilke?
Exibindo ar filosófico, o autor de Passeio na ilha respondeu:
-Vou citar uns versos curtos de Rudyard Kipling, inseridos no seu poema “A St. Helena lullaby”, título que pode ser traduzido como “Cantiga de ninar de Santa Helena.”
Num inglês impecável, Drummond recitou:

That no one knows
that no one knows
and no one ever will.”

(“Isto ninguém,
ninguém sabe,
                                 nem jamais poderá saber”).