Em 1977 eu
estava com Drummond no seu apartamento, vendo com ele um programa de televisão.
Riamos a valer, pois era programa de boa qualidade. De repente entrou na sala a
sua filha, que lhe disse:
-Papai, dois
jornalistas querem agora entrevistar o senhor.
Drummond
respondeu:
-Diga aos
dois que não posso atendê-los, porque estou assistindo com um amigo ao programa
“Os Trapalhões” do Renato Aragão, na TV Globo.
Maria Julieta
riu e afirmou:
-Você é uma
criança, pai.
Após o
programa, Drummond proferiu estas palavras:
-Admiro muito
o Renato Aragão. É um cômico de talento, nascido em Sobral, no Ceará, e formado
pela Faculdade de Direito daquele estado. Segundo me informaram, ele se tornou
advogado do Banco do Brasil, mas logo quis virar cômico. Eis aí o que se chama
“a força irresistível de uma vocação”.
Em seguida o
poeta elogiou dois filmes do cearense, Adorável
trapalhão, de 1968, e Simbad, o
marujo trapalhão, de 1976:
-Gostei
desses filmes, causaram-me, sem conseguir reprimi-las, gostosas risadas. E acho
que o inglês Charles Chaplin é um dos inspiradores do nordestino Renato Aragão,
pois há visível influência do Carlitos nos gestos e no jogo fisionômico do
nosso artista. Aliás, Chaplin sempre foi um dos meus ídolos. O escritor Eduardo
Frieiro também é fã do Renato, vive enaltecendo os seus filmes.
Cinco anos
depois, no dia 23 de março de 1982, ao visitar Drummond, encontrei-o tristonho:
-Qual é a
causa dessa melancolia?
O poeta
explicou:
-Morreu hoje
um excelente amigo, o Eduardo Frieiro, fundador da Sociedade Editora Amigos do
Livro, que publicou em Minas, no ano de 1934, o meu Brejo da almas. Frieiro, como você não ignora, é autor de três
obras saborosas: A ilusão literária,
O diabo na livraria do cônego e Feijão, angu e couve, esta última um
admirável ensaio sobre a culinária dos mineiros. Eu sentia muita pena do
Eduardo, pois ele ficou cego no fim da sua vida. Uma tragédia para um homem que
era ledor voraz e fervoroso cinéfilo, apaixonado pelos filmes de Carlitos.
Então
Drummond me contou: o extinto, filho de um pedreiro e de uma operária, só
completara o curso primário, mas como esforçado autodidata logrou obter vasta
cultura humanística. Lia desembaraçadamente obras em latim, inglês, francês,
espanhol e italiano. A convite de Juscelino Kubitschek, quando este exerceu o
cargo de governador de Minas, o escritor Eduardo Frieiro dirigiu e organizou,
ao longo de dez anos, a Biblioteca Pública Estadual Luís de Bessa.
Depois de
ouvir estas informações, eu observei:
-A desgraça
do Eduardo Frieiro me traz à memória duas outras desgraças, a do poeta,
jornalista e escritor Lúcio de Mendonça, o verdadeiro fundador da Academia
Brasileira de Letras, que em 1904 perdeu a vista, tendo ido à Europa para
consultar oftalmologistas da Itália e da Alemanha, e a desgraça do seu irmão
Salvador de Mendonça, também escritor, vítima da cegueira como ele, e que
passou os últimos anos de vida na sua chácara da Gávea, cultivando rosas.
Drummond me
elogiou, por eu expor tais minúcias. Banquei o modesto:
-São
coisinhas, qualquer pessoa é capaz de memorizar esses quiriquiquis.
Ele me
cumprimentou, rindo:
-Parabéns,
gostei dos quiquiriquis.
A curiosidade
me impeliu a perguntar:
-Você é
cinéfilo, fã ardente dos filmes de Carlitos, como foi o seu amigo Eduardo
Frieiro?
-Sim, e desde
mocinho. Amei, por exemplo, o A dog’s
life (“Vida de cachorro”), filme do Chaplin de 1918. Já viu este filme?
-Confesso que
não.
-A fita mostra
o vagabundo Carlitos salvando a vida de um cachorro prestes a ser estraçalhado
por outros cães. Ele o esconde nas suas calças e penetra num salão de baile,
onde uma cantora é explorada pelo dono desse salão. Impressionou-me, além das
situações cômicas, a dinâmica do filme, realizado na época em que o cinema não
dispunha, como hoje, de tantos recursos técnicos.
Outro filme
de Carlitos emocionou Drummond de modo profundo: The kid (“O garoto”). Assistido em 1922, no tempo em que ele, com
vinte anos, obteve um prêmio de cinquenta mil-réis da revista Novella Mineira, de Belo Horizonte,
pelo conto “Joaquim do telhado”.
-Comoveu-me
ao ver a película – revelou o poeta – o menino abandonado, Jackie Coogan, que o
vidraceiro Carlitos protege e ama como se fosse um filho. É mistura de comédia
e drama, de risos e lágrimas.
Drummond
ofereceu-me um pedaço de chocolate e prosseguiu:
-No ano de
1925, o da conclusão do meu curso de Farmácia e do meu casamento com a Dolores
Dutra de Morais, eu...
Interrompi o
poeta:
-Nesse ano
você fundou com Emílio Moura o órgão do Modernismo mineiro, A Revista.
-Exato, e
nesse ano de 1925 vi o filme The gold
rush (“Em busca do ouro”), do Chaplin, uma comédia inspirada num
acontecimento trágico, na expedição de um grupo de imigrantes na Sierra Nevada
dos Estados Unidos. Presos no gelo, famélicos, os participantes dessa expedição
foram obrigados a devorar os próprios sapatos e os cadáveres insepultos dos
seus companheiros.
O itabirano,
continuando, falou sobre o filme The
circus (“O circo”), que custou dois anos de trabalho a Chaplin:
-Fui vê-lo em
1927, antes de iniciar a minha carreira de funcionário público na Secretaria da
Educação de Minas Gerais. É o derradeiro filme mudo de Charlitos. A sua parte
final me emocionou.
E Drummond o
descreveu:
-O vagabundo
Carlitos, perseguido como ladrão, e na ânsia de escapar da policia, consegue
entrar num circo, onde se transforma no artista principal. Ele se apaixona pela
amazona do circo, maltratada pelo patrão. Todavia, um jovem e belo equilibrista
desperta o amor da moça, após o vagabundo ajudá-la a melhorar de vida. Grata ao
vagabundo, ela propõe ir embora com ele, mas Carlitos não deseja perturbar o
idílio dos dois e fica sozinho no picadeiro do circo, quando a amazona e o
equilibrista partem.
Drummond concluiu:
-Ao ver a
cena, senti como é pungente o amor incompleto, frustrado, e como é angustiante
a solidão das almas sensíveis que contemplam o esfacelamento dos seus sonhos.
Valendo-me do
assunto, eu indaguei:
-Caro amigo,
conhece o pensamento do escritor espanhol Severo Catalina, que viveu no século
XIX, sobre a solidão?
Ele fixou os
miúdos olhos azuis em mim, com um negativo meneio de cabeça, e caprichei no meu
castelhano:
“Quien no ha
vertido lágrimas en la soledad, no sabe cuáles son las lágrimas verdaderamente
amargas. La soledad es el egoísmo supremo del
dolor.”
-Concordo –
declarou Drummond – e em homenagem à nossa amizade, vou recitar quatro versos
do meu livro Poesias, de 1942.
De maneira
lenta, sóbria, os versos fluíram da sua boca de lábios finos:
“Ó solidão do boi no campo,
homens torcendo-se calados!
A cidade é inexplicável!
e as casas não tem sentido algum”.
Soltei esta
frase:
-Você
exprimiu o inexprimível.
Os olhos de
Drummond cintilaram e o meu amigo acrescentou:
-Fernando,
ainda a propósito de Carlitos. Fiquei fascinado, após a Revolução de 1930, pelo
filme City lights (“Luzes da
cidade”), no qual ele, pequeno vagabundo, socorre uma vendedora de flores cega.
Nesse filme o cômico genial salva a vida de um magnata bêbado, excêntrico e
imprevisível. Só nas horas em está no porre, o ricaço é carinhoso com o pequeno
vagabundo. Tocante, levou-me às lágrimas, o desfecho, a última cena dessa joia
do cinema.
Mais dois
filmes de Chaplin receberam louvores do poeta: Modern times (“Tempos modernos”), de 1936, e The great dictator (“O grande ditador”), de 1940. No primeiro
Drummond enxergou eficiente sátira contra o regime capitalista, o trabalho
mecânico, brutal, desumano, e no segundo uma premonição, uma crítica
aniquiladora contra os regimes de arbítrio, de natureza nazi-facista.
-Admiro tanto
O grande ditador – assegurou – que
guardei um trecho do discurso de Carlitos, pronunciado no fim da película.
Quero ler para você o texto.
O autor de Os dias lindos se ergueu e tirou de uma
escrivaninha um papel. Foi lendo:
“Soldados!
Não vos entregueis a esses brutos (os ditadores), homens que vos desprezam, vos
escravizam, governam vossa vida, dizendo-vos o que deveis fazer, sentir e
pensar. Eles vos matam de fome, dão-vos roupa ordinária, tratam-vos como ao
gado e vos aproveitam como carne de canhão. Não vos entregueis aos inimigos do
homem, homens máquinas, com cérebros de máquinas e coração de máquinas. Vós não
sois máquinas! Vós sois homens! Tendes amor à humanidade em vossos corações!
Não odieis! Somente aquele que não é amado, odeia! Soldados! Não luteis pela escravidão,
lutai pela liberdade!”
Aplaudi,
impulsionado pelo entusiasmo:
-Drummond,
você leu tão bem que me deu impressão de ser o próprio Carlitos no filme O grande ditador.
E indaguei,
antes de comer outro pedaço de chocolate:
-Como é o
conto que em 1922 fez você ganhar o prêmio de cinquenta mil-réis?
Ele
especificou:
-Os cinquenta
mil-réis mais comoventes da minha vida. A revista Novella Mineira, onde ele apareceu, era do Aníbal Matos, fluminense
de Vassouras, e do Oswaldo Araújo, nascido no meu estado, em Dores do Indaiá.
Aliás, sinto um afeto especial por este sonoro nome, Indaiá, da língua tupi. Significa palmeira. O conto “Joaquim no telhado” é a história de um sapateiro
que depois de ter enlouquecido, passa os dias na cobertura da sua casa, sempre
a filosofar...
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Escritor e jornalista, Fernando Jorge é autor
do livro Se não fosse o Brasil, jamais Barack Obama teria nascido, lançado pela
Editora Novo Século
Um comentário:
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