Escritor
de talento, J. R. Guedes de Oliveira, autor do excelente livro Quatro figuras, solicitou-me um
depoimento sobre Walt Whitman. Senti-me honrado com o convite e enviei-lhe o
texto abaixo reproduzido, com este título: “Walt Whitman sonhou um cristianismo
singular”.
“A
franqueza do poeta Walt Whitman não era rudeza e sim autenticidade. Numa carta
enviada à sua mãe, em 1862, no ano do aparecimento de Os miseráveis, de Vitor Hugo, ele se classificou como “um grande
búfalo selvagem, recoberto de pêlos". Comparação apropriada, pois nada
detém o búfalo nas pradarias e nas regiões pantanosas. Esse animal da família
dos bovídeos, com mais de dois metros de comprimento, é um símbolo de força, de
arrojo, de coragem, de tenacidade, de independência. E nos versos soltos de
Walt Whitman existe essa força, o ímpeto da alma livre, a perseverança no amor
ao próximo, a completa independência do pensamento.
Só
podia ter um espírito vigoroso o poeta que exaltou a democracia, glorificou o
homem comum, enaltecendo a união dos povos, a igualdade das raças. Jamais o
racismo do Conde de Gobineau e do nazista Alfred Rosenberg encontrou guarida no
imenso coração de Walt Whitman, do qual saíram estas palavras:
“Multidões
de homens e mulheres, com seus trajes habituais, como sois curiosos para
mim!... Eu também sou um da massa... Todos os homens e mulheres que vejo são
iguais a mim”.
Anunciador
de uma humanidade igualitária, sem ódios, sem preconceitos, ele dizia ser o
espírito de Deus irmão do seu, vendo almas idênticas à sua em qualquer pessoa.
Aconselhava todos a nunca se curvarem diante dos que se julgam superiores, pois
ninguém é superior a ninguém. Todos, sem exceção, nasceram da generosa Terra,
foram gerados pelo seu ventre fecundo. O amor de Walt Whitman à mãe Terra está
expresso nestes versos:
“Dê a mim
o teu sorriso, Terra de brisa fresca!
Terra das
árvores fluidas, adormecidas!
Terra dos
últimos raios do poente!
Terra das
montanhas encapuzadas de brumas!
Terra do
jorramento vítreo da lua cheia, tingida de azul!”
Na
poesia de Walt Whitman os pontos de exclamação se multiplicam, constituem a
prova do seu entusiasmo, do seu afeto profundo por todas as maravilhas da
natureza. Há eloquência farta em Leaves
of Grass, mas eloquência sem retórica, tão espontânea, tão natural como
água pura, cristalina, a fluir de uma fonte.
Antes
do brasileiro Raul de Leoni, o norte-americano Walt Whitman sonhou um
cristianismo diferente. O cristianismo de Walt é gêmeo daquele que Leoni
descreveu neste soneto:
“Sonho um
cristianismo singular,
Cheio de
amor divino e prazer humano,
O Horto
de Mágoas sob um céu virgiliano,
A
beatitude com mais luz e com mais ar...
Um
pequeno mosteiro em meio de um pomar,
Entre
loureiros-rosa e vinhas de todo o ano,
Num
misticismo lírico, a sonhar
Na orla florida
e azul de um lago italiano...
Um
cristianismo sem renúncia e sem martírios,
Sem a
pureza melancólica dos lírios,
Temperado
na graça natural...
Cristianismo
de bom-humor, que não existe,
Onde a
Tristeza fosse um pecado venial,
Onde a
Virtude não precisasse ser triste...”
Aliás,
Walt Whitman saudou o Brasil, na sua poesia cheia de calor, aberta, livre como
são livres as ondas dos oceanos e os pássaros nas alturas:
“Bem-vindo
sejas, irmão brasileiro!
Teu amplo
lugar está pronto.
Um
sorriso te enviamos do Norte, e
Mãos
carinhosas, uma urgente saudação,
plena de sol!”
Infelizmente,
no Brasil, nem sempre Walt Whitman foi bem compreendido. Num manual de autoria
coletiva, por exemplo, no volume Literatura
estrangeira, publicado pela editora FTD em 1931, esse resplandecente vulto
da literatura universal é mostrado como “Vitor Hugo de segunda zona”, “poeta
dos mais estapafúrdios”, “escritor pagão ainda mais cabalístico que Edgard
Poe”, dotado de “luxúria mística, imitada depois, senão piorada, por Sherwood
Anderson.” Após ler este aglomerado de asneiras, eu me lembrei da seguinte
frase de um filósofo:
“A
única coisa que nos pode dar a ideia do infinito é a estupidez humana”.
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Escritor e jornalista,
Fernando Jorge é autor do livro Se não
fosse o Brasil, jamais Barack Obama teria nascido, cuja 6ª edição foi
lançada pela Editora Novo Século
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