domingo, 6 de outubro de 2019

EU GOSTO DE DORMIR EM CIMA DELAS


            
O meu amigo Henrique Magalhães de Vilhena comprou uma bela cama do século XIX e me disse, entusiasmado:

            -Fernando, além de ser muito linda, a minha cama é deliciosa! Apaixonei-me por ela, e tanto, tanto, que fico horas e horas deitado, sem a intenção de abandoná-Ia.
            Vários homens amaram as suas camas como se estas fossem mulheres. Certos leitos, aliás, com os seus colchões macios, parecem ter uma natureza feminina.
            Joseph Plumer, um americano de Rochester, ao ver que os pais se recusavam a dar-lhe o consentimento para se casar, meteu-se na ca­ma e nunca mais a deixou. Viveu desse modo durante quarenta e quatro anos, até morrer. E gozava de boa saúde...
            Um alemão excêntrico, Frirz BabeI, da cidade de Munique, ambicionando conservar a saúde, ficou sessenta anos na sua cama.
            Os filósofos Descartes (1596-1650) e Leibniz (1646-1716) gostavam de meditar nos seus leitos, em posição horizontal. Ambos queriam que o cérebro e o coração se encontrassem no mesmo nível, porque assim a corrente sanguínea poderia chegar sem obstáculos à massa encefálica. Eles amavam as respectivas camas, como o meu amigo Henrique ama a sua.
            Músico dotado de sutilíssimo colorido melódico Rossini (1792-1868) compôs na cama quase todas as suas óperas, inclusive “O barbeiro de Sevilha”.
            A cama foi e ainda é uma leal amiga dos escritores céle­bres. Ela lhes proporciona paz, segurança, conforto, e assemelha-se, sob este aspecto, a barco vigoroso que em mares agitados conduz um ser frágil a abrigo seguro.
Voltaire (1694-1778), exibindo velho gorro de lã na cabeça ossuda, permanecia horas seguidas na cama, pois ele era vítima, segundo a­firmava, de mais de oitenta doenças, como, por exemplo, sarna, gota, cons­tipação, gripe, varicela, erisipela, reumatismo, disenteria, hidropisia, hemorroida, fluxo do peito, encolhimento dos nervos, etc, etc. Esquelético, bem agasalhado, Voltaire sentia-se mais forte na cama, a fim de enfrentar as tais enfermidades...
            O romancista inglês Charles Dickens (1812-1870) vivia sempre preocupado, por causa da sua cama. Se esta não estivesse com a cabeceira voltada na direção do norte, ele não conseguia dormir direito. Quando o autor de “David Copperfield” viajava, ao hospedar-se em qualquer hotel, recorria a uma bússola para mandar colocar a cama na posição dese­jada.
Aquecido na cama, em quarto com forros de cortiça à prova de som, o romancista francês Marcel Proust (1871-1922), sujeito a constantes acessos de asma, começou a escrever em 1913 a obra-prima que o imortalizaria: “Em busca do tempo perdido” (“A la­ recherche du temps perdu”).
Filho de mãe brasileira, o escritor uruguaio Juan Carlos Onetti (1909-1994), autor do sombrio romance “Juntacadaveres”, radicou-se na Espanha em 1975. Onetti passou os seus últimos anos na cama, não devido a uma doença grave, mas sim por desânimo, amargura, desilusão. Só tinha estas três companhias: a cama, o cigarro e a garrafa de uísque.
Indiscutível, a cama pode inspirar os poetas. Afinal, é nela que as suas musas mostram os encantos secretos, as curvas dos seios, das ancas, das pernas, nas quais eles se perdem... O poeta Emilio de Me­nezes (1866-1918) declara no soneto “Noite de insônia”:

“Este leito que aí está revolto assim, desfeito,

Onde humilde beijei teus pés, as mãos, o busto,

Na ausência do teu corpo a que estava afeito,

Mudou-se, para mim, num leito de Procuato..."

Figura mitológica, Procusto era um bandido da Ática. Ele enfiava as suas vítimas numa cama de ferro e cortava-lhes os pés, se ex­cediam o comprimento da cama, ou esticava-os com cordas.
Às vezes eu sinto à vontade de lançar 06 nossos políticos corruptos no leito de Procusto. Que Deus me perdoe!
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Escritor e jornalista, Fernando Jorge é autor do livro As lutas, a glória e o martírio de Santos Dumont, lançado pela HaperCollins

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