Os sentimentos mais preponderantes dos ditadores são, em
nossa opinião, apenas dois: “a vontade de potência”, isto é, a der Wille zur macht de Nietzsche, e um
egocentrismo narcisista, deformador por excelência. O próprio Hitler era um
crente fanático do predomínio bruto das faculdades volitivas, supondo-se um
"super-homem" colocado acima do bem e do mal. Foi, portanto, um
nietzschiano algo inconsciente, conforme deduzimos do depoimento de Hermann
Rauschning:
"Fui, muitas
vezes, como tantos outros, o ouvinte que servia a Hitler para se convencer a si
mesmo. Desta maneira ele me revelou, por fragmentos, a sua ‘filosofia’, as suas
vistas gerais sobre a moral, o destino humano e o sentido da História.
Tratava-se de Nietzsche mal digerido, mais ou menos amalgamado com as ideias
vulgarizadas duma certa tendência pragmática da filosofia contemporânea.”
Hitler, o vândalo do
nacional-socialismo, assegurava que "Direito era tudo aquilo que trazia
proveito à Alemanha". Definição cínica à primeira vista, mas que, se
examinarmos bem, possui raízes no pensamento anarquista do profeta de Assim falava Zaratustra, filósofo de um
amoralismo que inúmeras vezes chega às raias da demência.
Outro ponto de contacto
que o ditador alemão, sectário da supremacia da raça ariana, tinha com o mestre
de Basiléia, partidário da supremacia biológica: o misticismo. Nas tiradas oratórias
abusava a valer de termos como "honra", "sangue" e
"terra". Nietzsche, com todo seu intelectualismo positivista, com
todo seu racionalismo pagão, quando dissertava sobre o "ideal do
moralista", a "libertação do pecado", mergulhava muitas ocasiões
numa atmosfera nebulosa, metafísica, e mais parecia um sacerdote órfico a
celebrar com unção o seu ofício religioso do que o apologista revolucionário da
guerra e da escravatura.
Tanto Nietzsche como
HitIer eram doentes mentais. O primeiro, como todos sabem, morreu louco, e o
segundo, de acordo com o diagnóstico do embaixador inglês Neville Henderson,
foi um maníaco depressivo... Nietzsche, o estrênuo propagandista da "inversão de valores", assistiu,
incauto, ao desmoronamento progressivo e integral do próprio intelecto. Seu
cérebro, tão potente, de ideias tão másculas, começou, aos poucos, a se
fragmentar. As sutilezas, as delicadas percepções, as maravilhosas analogias,
foram desaparecendo e dando lugar a uma apatia muito semelhante à indiferença
dos débeis de espírito. O pai do Nazismo, por sua vez, sentindo-se derrotado em
todos setores, acuado como fera raivosa por beluários impiedosos, ainda
delirava na sua megalomania, ameaçando com conselhos de guerra os generais que
não quisessem prosseguir na carnificina. Mandava arrasar e incendiar as regiões
prestes a serem pisadas pelas botas do inimigo. As bombas rebentavam, ensurdecedoras,
na sua chancelaria, os russos forçavam, implacáveis, as portas de Berlim, mas
ele, o Führer paranóico, delirante, alucinado, não queria fugir
da capital em ruínas, ameaçada de completa destruição.
Nietzsche foi o
espectador inconsciente, abúlico, da desintegração paulatina do seu vigoroso
cérebro. Hitler, ouvindo o matracolejar das metralhadoras, o sibilo das balas,
o estouro das granadas, o ribombo dos canhões, contemplou consciente, possesso,
o desabamento fragoroso de todos os seus ardentes sonhos de supremacia
universal. E só obteve uma saída, só encontrou uma solução para tamanho
tormento: o suicídio libertador com um tiro de revólver.
O ditador Getúlio
Vargas também achou que o suicídio devia ser o desfecho dramático da sua vida
paradoxal. E esse brasileiro que vivia rasgando constituições, morreu
amortalhado nas pregas hieráticas e nobres de uma constituição.
Robespierre, embora não
tivesse discernimento claro do seu despotismo, era um legítimo déspota. Frugal,
messiânico, impassível, austero, incorruptível, dominava a Convenção, exercendo
um poder absoluto. E como acabou o severo, o intransigente, o honestíssimo
Maximilien François Isidore Robespierre, adversário irredutível dos girondinos,
alma pura e draconiana da República? Debaixo do gume afiado da insaciável guilhotina...
O seu compatriota
Etienne MarceI, simples burguês e comerciante, chegou na Idade Média a
transformar-se em ditador da França, graças, acentuemos, à sua sagacidade política.
Aboliu privilégios, impôs ao Estado uma organização liberal, extinguiu
impostos, protegeu o povo contra a prepotência dos nobres. No entanto terminou
a existência de modo trágico. Esse mesmo povo pelo qual tanto havia lutado resolveu,
de repente, trucidá-Io em plena rua...
Um ditador em cujas
veias, como Napoleão, corria o cálido sangue latino: Mussolini. Este declarou
uma vez a Emil Ludwig que "cada homem morre da morte que corresponde ao
seu caráter". Pelo menos no seu caso a afirmativa foi verdadeira. O Duce, que tinha um temperamento
teatral, gostando de impressionar o povo com gestos dramáticos, morreu tragicamente.
Ao tentar fugir para a Suíça, em companhia da amante, viu-se detido pelos partigianos
e fuzilado. Seu corpo, em seguida, dependurado pelo pés, tornou-se o centro de
um espetáculo ignóbil. A populaça, animalizada pela vingança, cuspia no seu
cadáver e o apedrejava.
Conta Gennaro Vaccaro
que certa feita Mussolini, achando-se a descansar em sua residência do Lago de
Garda, perguntou a um ministro:
-Que dirão de mim
quando eu morrer?
-Oh, indubitavelmente a
saudade será mundial, embora os seus inimigos sejam numerosos.
-Nada disto - retrucou
o Duce - dirão somente: até que
enfim estamos livres!
O italiano não precisou
de um poeta da envergadura de Victor Hugo para proclamar, após a sua morte, o
alívio do planeta. Ele mesmo soube exprimir, em vida, o sentimento da
humanidade a seu respeito...
Emil Ludwig, aliás, em
1939, profetizou no livro Vier
Diktatoren:
“O futuro de Mussolini
está em suas próprias mãos. Se ele se lançar na aventura do seu imitador (Hitler),
perecerá, no fim, junto com ele. Se ficar afastado tornará evidente o quanto
lhe foi superior em prudência política".
Júlio César, o maior
ídolo do chefe da Marcha sobre Roma, o homem da História que ele mais venerava,
apesar de ter sido um tirano esclarecido, tombou golpeado pelo punhal de Bruto.
César Bórgia, o modelo
que inspirou a Maquiavel o seu célebre livro O Príncipe era um ditador de muito menor gênio político. Morreu
trucidado numa escaramuça, ficando com o corpo crivado de vinte e duas
punhaladas.
Não pense o leitor que
após tantos exemplos termina aqui a evocação dos ditadores cujas existências
aventurosas tiveram epílogo desonroso.
Chandragupta, ditador
da Índia, pereceu de fome. Primo de Rivera, caudilho espanhol, experimentou as
agruras do exílio. Abdul-Hamid, o sultão vermelho que muito contribuiu com a
sua crueldade e desmandos para a decadência do Império Otomano, foi destronado
e exonerado de todos os seus privilégios, morrendo obscuramente no desterro. O
Marquês de Pombal, que exerceu sobre o espírito de D. José I a mais forte
ascendência, quando este morreu, foi demitido do seu cargo de ministro e
processado por D. Maria I. Em 1781, um decreto real fê-lo morar cerca de vinte
léguas do paço, humilhação pesada em demasia para o seu caráter excessivamente
orgulhoso. Maximiliano I, do México, quis tornar-se o senhor indiscutível de um
grande império. Terrminou sendo julgado por um conselho de guerra e fuzilado.
Juan Rosas governou só pelo terror, causando a morte de mais de vinte mil
pessoas. Ao ver-se derrotado em Monte Caseros pelas forças coligadas do Brasil,
Uruguai e Argentina, fugiu acovardado para a Inglaterra, onde viveu no abandono
e na adversidade. Sobre o seu fim inglório escreveu o capitão Francisco de
Oliveira, do Segundo Regimento de Infantaria, sob o comando de Osório:
“Eras tigre sanhudo, um leão
que tudo quanto vias devoravas,
eras zorro manhoso que zombavas
do mais farejador, ligeiro cão.
Hoje és lerdo matungo, vil sendeiro,
novilho boi de carro, estropeado,
e em vez de leão, manso cordeiro.”
Ah, se os ditadores pudessem
desvendar os arcanos do futuro! Se fossem videntes renunciariam, com toda
certeza, aos seus doidos sonhos de mandonismo!
A única ditadura que um homem livre deve
aceitar, de bom grado, é a do Espírito. Em vez do cesarismo de um Hitler e de
um Mussolini só podemos acatar a autoridade de um Göethe e de um Dante. O
domínio dos primeiros foi efêmero, por ter sido material. O domínio dos
segundos é eterno, por ser espiritual.
Um comentário:
Não há melhor definição: "A única ditadura que um homem livre deve aceitar, de bom grado, é a do Espírito" Meus parabéns pelo excelente artigo.
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