sábado, 1 de junho de 2019

O FIM INGLÓRIO DOS DITADORES


Os sentimentos mais preponderantes dos ditadores são, em nossa opinião, apenas dois: “a vontade de potência”, isto é, a der Wille zur macht de Nietzsche, e um egocentrismo narcisista, deformador por excelência. O próprio Hitler era um crente fanático do predomínio bruto das faculdades volitivas, supondo-se um "super-homem" colocado acima do bem e do mal. Foi, portanto, um nietzschiano algo inconsciente, conforme deduzimos do depoimento de Hermann Rauschning:
"Fui, muitas vezes, como tantos outros, o ouvinte que servia a Hitler para se convencer a si mesmo. Desta maneira ele me revelou, por fragmentos, a sua ‘filosofia’, as suas vistas gerais sobre a moral, o destino humano e o sentido da História. Tratava-se de Nietzsche mal digerido, mais ou menos amalgamado com as ideias vulgarizadas duma certa tendência pragmática da filosofia contemporânea.”
Hitler, o vândalo do nacional-socialismo, assegurava que "Direito era tudo aquilo que trazia proveito à Alemanha". Definição cínica à primeira vista, mas que, se examinarmos bem, possui raízes no pensamento anarquista do profeta de Assim falava Zaratustra, filósofo de um amoralismo que inúmeras vezes chega às raias da demência.
Outro ponto de contacto que o ditador alemão, sectário da supremacia da raça ariana, tinha com o mestre de Basiléia, partidário da supremacia biológica: o misticismo. Nas tiradas oratórias abusava a valer de termos como "honra", "sangue" e "terra". Nietzsche, com todo seu intelectualismo positivista, com todo seu racionalismo pagão, quando dissertava sobre o "ideal do moralista", a "libertação do pecado", mergulhava muitas ocasiões numa atmosfera nebulosa, metafísica, e mais parecia um sacerdote órfico a celebrar com unção o seu ofício religioso do que o apologista revolucionário da guerra e da escravatura.
Tanto Nietzsche como HitIer eram doentes mentais. O primeiro, como todos sabem, morreu louco, e o segundo, de acordo com o diagnóstico do embaixador inglês Neville Henderson, foi um maníaco depressivo... Nietzsche, o estrênuo propagandista da  "inversão de valores", assistiu, incauto, ao desmoronamento progressivo e integral do próprio intelecto. Seu cérebro, tão potente, de ideias tão másculas, começou, aos poucos, a se fragmentar. As sutilezas, as delicadas percepções, as maravilhosas analogias, foram desaparecendo e dando lugar a uma apatia muito semelhante à indiferença dos débeis de espírito. O pai do Nazismo, por sua vez, sentindo-se derrotado em todos setores, acuado como fera raivosa por beluários impiedosos, ainda delirava na sua megalomania, ameaçando com conselhos de guerra os generais que não quisessem prosseguir na carnificina. Mandava arrasar e incendiar as regiões prestes a serem pisadas pelas botas do inimigo. As bombas rebentavam, ensurdecedoras, na sua chancelaria, os russos forçavam, implacáveis, as portas de Berlim, mas ele, o Führer  paranóico, delirante, alucinado, não queria fugir da capital em ruínas, ameaçada de completa destruição.
Nietzsche foi o espectador inconsciente, abúlico, da desintegração paulatina do seu vigoroso cérebro. Hitler, ouvindo o matracolejar das metralhadoras, o sibilo das balas, o estouro das granadas, o ribombo dos canhões, contemplou consciente, possesso, o desabamento fragoroso de todos os seus ardentes sonhos de supremacia universal. E só obteve uma saída, só encontrou uma solução para tamanho tormento: o suicídio libertador com um tiro de revólver.
O ditador Getúlio Vargas também achou que o suicídio devia ser o desfecho dramático da sua vida paradoxal. E esse brasileiro que vivia rasgando constituições, morreu amortalhado nas pregas hieráticas e nobres de uma constituição.
Robespierre, embora não tivesse discernimento claro do seu despotismo, era um legítimo déspota. Frugal, messiânico, impassível, austero, incorruptível, dominava a Convenção, exercendo um poder absoluto. E como acabou o severo, o intransigente, o honestíssimo Maximilien François Isidore Robespierre, adversário irredutível dos girondinos, alma pura e draconiana da República? Debaixo do gume afiado da insaciável guilhotina...

O seu compatriota Etienne MarceI, simples burguês e comerciante, chegou na Idade Média a transformar-se em ditador da França, graças, acentuemos, à sua sagacidade política. Aboliu privilégios, impôs ao Estado uma organização liberal, extinguiu impostos, protegeu o povo contra a prepotência dos nobres. No entanto terminou a existência de modo trágico. Esse mesmo povo pelo qual tanto havia lutado resolveu, de repente, trucidá-Io em plena rua...

Um ditador em cujas veias, como Napoleão, corria o cálido sangue latino: Mussolini. Este declarou uma vez a Emil Ludwig que "cada homem morre da morte que corresponde ao seu caráter". Pelo menos no seu caso a afirmativa foi verdadeira. O Duce, que tinha um temperamento teatral, gostando de impressionar o povo com gestos dramáticos, morreu tragicamente. Ao tentar fugir para a Suíça, em companhia da amante, viu-se detido pelos partigianos e fuzilado. Seu corpo, em seguida, dependurado pelo pés, tornou-se o centro de um espetáculo ignóbil. A populaça, animalizada pela vingança, cuspia no seu cadáver e o apedrejava.
Conta Gennaro Vaccaro que certa feita Mussolini, achando-se a descansar em sua residência do Lago de Garda, perguntou a um ministro:
-Que dirão de mim quando eu morrer?
-Oh, indubitavelmente a saudade será mundial, embora os seus inimigos sejam numerosos.
-Nada disto - retrucou o Duce - dirão somente: até que enfim estamos livres!
O italiano não precisou de um poeta da envergadura de Victor Hugo para proclamar, após a sua morte, o alívio do planeta. Ele mesmo soube exprimir, em vida, o sentimento da humanidade a seu respeito...
Emil Ludwig, aliás, em 1939, profetizou no livro Vier Diktatoren:
“O futuro de Mussolini está em suas próprias mãos. Se ele se lançar na aventura do seu imitador (Hitler), perecerá, no fim, junto com ele. Se ficar afastado tornará evidente o quanto lhe foi superior em prudência política".
Júlio César, o maior ídolo do chefe da Marcha sobre Roma, o homem da História que ele mais venerava, apesar de ter sido um tirano esclarecido, tombou golpeado pelo punhal de Bruto.
César Bórgia, o modelo que inspirou a Maquiavel o seu célebre livro O Príncipe era um ditador de muito menor gênio político. Morreu trucidado numa escaramuça, ficando com o corpo crivado de vinte e duas punhaladas.
Não pense o leitor que após tantos exemplos termina aqui a evocação dos ditadores cujas existências aventurosas tiveram epílogo desonroso.
Chandragupta, ditador da Índia, pereceu de fome. Primo de Rivera, caudilho espanhol, experimentou as agruras do exílio. Abdul-Hamid, o sultão vermelho que muito contribuiu com a sua crueldade e desmandos para a decadência do Império Otomano, foi destronado e exonerado de todos os seus privilégios, morrendo obscuramente no desterro. O Marquês de Pombal, que exerceu sobre o espírito de D. José I a mais forte ascendência, quando este morreu, foi demitido do seu cargo de ministro e processado por D. Maria I. Em 1781, um decreto real fê-lo morar cerca de vinte léguas do paço, humilhação pesada em demasia para o seu caráter excessivamente orgulhoso. Maximiliano I, do México, quis tornar-se o senhor indiscutível de um grande império. Terrminou sendo julgado por um conselho de guerra e fuzilado. Juan Rosas governou só pelo terror, causando a morte de mais de vinte mil pessoas. Ao ver-se derrotado em Monte Caseros pelas forças coligadas do Brasil, Uruguai e Argentina, fugiu acovardado para a Inglaterra, onde viveu no abandono e na adversidade. Sobre o seu fim inglório escreveu o capitão Francisco de Oliveira, do Segundo Regimento de Infantaria, sob o comando de Osório:
“Eras tigre sanhudo, um leão
que tudo quanto vias devoravas,
eras zorro manhoso que zombavas
do mais farejador, ligeiro cão.

Hoje és lerdo matungo, vil sendeiro,
novilho boi de carro, estropeado,
e em vez de leão, manso cordeiro.”

Assim terminam, em noventa e nove por cento, os ditadores. Dirão, talvez, que existem exceções. Não negamos. Mas são raríssimas. Em regra morrem tragicamente ou alcançam um fim sombrio, humilhante e inglório. Quando escapam em vida de atentados, como Napoleão da "máquina infernal" de Cadoudal, não escapam, depois de mortos, às injúrias e ultrajes. Vejam Cromwell. É certo que desapareceu no zênite do poder. É certo, também, que foi sepultado, com todas as honras, na Abadia de Westminster. Entretanto é verdade, igualmente, que em 1660, por ocasião da Restauração Monárquica, teve de ser desenterrado, enforcado em Tyburn e queimado nos pés do cadafalso. Contemplemos por outro lado, um Stalin. Enquanto viveu foi um ídolo para os seus correligionários. Hoje, na Rússia, seus próprios camaradas movem contra ele uma campanha de descrédito. Suas estátuas são tombadas, seus retratos retirados das paredes, seu nome excluído dos livros.

Ah, se os ditadores pudessem desvendar os arcanos do futuro! Se fossem videntes renunciariam, com toda certeza, aos seus doidos sonhos de mandonismo!
A única ditadura que um homem livre deve aceitar, de bom grado, é a do Espírito. Em vez do cesarismo de um Hitler e de um Mussolini só podemos acatar a autoridade de um Göethe e de um Dante. O domínio dos primeiros foi efêmero, por ter sido material. O domínio dos segundos é eterno, por ser espiritual.  

Um comentário:

Estêvão Zizzi - Advogado disse...

Não há melhor definição: "A única ditadura que um homem livre deve aceitar, de bom grado, é a do Espírito" Meus parabéns pelo excelente artigo.