domingo, 9 de junho de 2019

MANUEL BANDEIRA ME CRITICOU E DRUMMOND ME DEFENDEU


Quando surgiu a primeira edição do meu livro Vida e poesia de Olavo Bilac, que se tornou um best-seller (agora está na quinta edição), o poeta Manuel Bandeira produziu uma crônica com o objetivo de criticá-lo. Deu a ela o seguinte título: “Amores de Bilac”. Texto inserido no livro Quatro vozes, lançado pela Editora Record do Rio de Janeiro e que reúne crônicas dele, Manuel Bandeira (1886-1968), de Cecília Meirelles (1901-1964), de Rachel de Queiroz (1910-2003), e de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987).
Logo no começo do seu texto, Manuel Bandeira pariu um erro, pois declarou: “Via-Láctea” é um livro de Olavo Bilac. Ora, o primeiro livro do poeta carioca se chama Poesias. Foi publicado em São Paulo, no ano de 1888, por Teixeira & Irmãos, sendo composto de três partes, “Panóplias”, “Via-Láctea”, “Sarças de fogo”. Portanto “Via-Láctea” não é o título de um livro de Bilac e sim uma das três partes do livro Poesias, impresso em Portugal.
Manuel Bandeira escreveu isto, na sua crítica à minha biografia:
“...é muito provável que os noivos (Bilac e Amélia de Oliveira) tivessem casado...”
Na acepção de unir por meio de casamento, o mais correto é usar a forma pronominal:
“...tivessem se casado...”
Mais adiante, ele cometeu este erro de português:
“Bilac teve que afastar-se”...
Corrigindo:
“Bilac teve que se afastar”...
Segundo Bandeira, após a morte do autor de “Pomba e chacal”, começou a materializar-se a lenda de um Bilac sempre fiel ao amor de Amélia de Oliveira, de um “coió sem sorte”. Depois o poeta pernambucano acrescentou:
“E é esse Bilac bastante ridículo que nos apresenta o livro Vida e poesia de Olavo Bilac, recentemente editado e da lavra de Fernando Jorge.”
O autor de A cinza das horas zomba da descrição que eu fiz do enlevo de Bilac diante de umas flores vermelhas, enviadas por Amélia à sua irmã, quando ele se achava bem doente, prestes a morrer. Bilac beijou com enorme suavidade uma dessas flores, conforme o depoimento da irmã. Bandeira rotulou de ridícula a descrição da cena. Referiu-se também a outro episódio, apenas algo cômico, teatral, evocado na página 339 do meu livro, a fim de negar o amor duradouro de Bilac pela irmã de Alberto de Oliveira, como a minha biografia revela.
Após a publicação da crônica, encontrei-me com Carlos Drummond de Andrade e o itabirano me disse:
-Fernando, discordei do Manuel Bandeira, por causa da crônica que ele fez sobre o seu livro Vida e poesia de Olavo Bilac. O Manuel foi injusto. Você limitou-se a evocar um episódio narrado pela irmã de Bilac, a Cora. Se o episódio é ridículo, no raciocínio do Manuel, a culpa não é sua... Além disso um biógrafo tem o direito de exibir fatos ridículos.
Em seguida, num tom confidencial, Drummond acentuou:
-Aqui entre nós, eu gosto do Manuel, somos amigos íntimos, mas ele não entende nada de amor, de mulheres. Uma amiga sua, chamada Lurdes, sexagenária enérgica, durona, exerce sobre ele um domínio impressionante. Obriga-o a ficar de pijama listrado, um pijama horroroso, no seu apartamento da rua Aires Saldanha, e controla, com excessivo rigor, a alimentação do indefeso poeta, que para se distrair um pouco, dedica-se horas a fio a decifrar palavras cruzadas de revistinhas.
Drummond se ergueu da cadeira e pegou numa pequena estante um velho exemplar da revista Careta. Proferiu estas palavras:
-A crítica do Manuel foi duplamente injusta, tanto em relação ao seu livro como em relação a Bilac. Já confessei a você, aliás, que eu adorava ler os sonetos do Olavo. Eram publicados em páginas inteiras da revista Careta, com ilustrações coloridas de J. Carlos. Veja este exemplar da revista, o número 251, de 22 de março de 1913.
Abrindo o semanário, Drummond mostrou-me numa página o soneto “Hino à tarde”, de Olavo Bilac, onde há um desenho colorido de J. Carlos, no qual aparece etérea figura feminina de olhos cerrados, longa veste transparente, braço estendido, e a segurar, na mão delicada, cintilante estrela de raios prateados. Destaca-se, no fundo do desenho, um límpido céu cor de ouro, contrastando com a vegetação invadida pelo negrume da noite.

Elogiei a bela ilustração e Drummond enfatizou:
-Nesta página da Careta vemos duas poesias, a do desenho de J. Carlos e a dos versos de Bilac.
Então, de modo solene, o discreto, o introvertido porém sensível filho de Itabira, recitou o soneto “Hino à tarde”:

“Glória jovem do sol no berço de ouro e chamas,
Alva! Natal da luz, primavera do dia,
Não te amo! Nem a ti, canícula bravia,
Que a ti mesma estruis no fogo que derramas.

Amo-te, hora hesitante em que se preludia
O adágio vesperal – tumba que te recamas
De luto e de esplendor, de crepes e auriflamas,
Moribunda que ris sobre a própria agonia!

Amo-te, ó tarde triste, ó tarde augusta, que entre
Os primeiro clarões das estrelas, no ventre,
Sob os véus do mistério e da sombra orvalhada,

Trazes a palpitar, como um fruto de outono,
A noite, alma nutriz da volúpia e do sono,
Perpetuação da vida e iniciação do nada...”

Aplaudi e Drummond comentou:
-Imagine, Fernando, como os fanáticos pela poesia moderna ficariam espantados, vendo eu declamar, cheio de emoção, este impecável soneto parnasiano do Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac, poeta que é tão poeta que o seu nome inteiro, como frisou João do Rio, forma um verso alexandrino perfeito!

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