Carlos
Drummond de Andrade, conforme acentuei, era vítima de sua própria fama.
Sentia-se tolhido com o assédio dos seus admiradores. Muitas vezes me
confessou:
-Ah,
Fernando, que saudade daquela vida livre em Itabira, durante o meu tempo de
meninice! Quanta saudade das minhas inocentes caminhadas pela rua Estrela, no
bairro da Água Fresca!
E
o poeta me falou com carinho das suas andanças itabiranas pelos bairros do
Areão, do Moinho Velho e da Abóbora, nomes registrados imediatamente por mim no
meu caderninho. Drummond brincou:
-Você,
anotando tudo, me dá a impressão de ser um detetive encarregado por um corno de
registrar os locais dos encontros da esposa infiel com o amante.
Soltei
uma risada e neste momento Maria Julieta entrou na sala:
-Papai,
aquele rapaz do Jardim Botânico...
Achava-se
ao lado da filha de Drummond um jovem obeso, de fisionomia arredondada como o
formato de certas caixas de pizza. Ele se adiantou e disse:
-Mestre,
grande poeta!
Drummond
não conteve a ironia:
-Estamos
num país de mestres e de grandes poetas...
O
moço emitiu um protesto:
-Carlos
Drummond de Andrade é mesmo um mestre e um grande poeta!
-Obrigado,
mas você me vê com lentes de aumento.
-O
senhor é gênio, a man of genius, the
genius of Brazil! Adoro a sua poesia “Memória”, do livro Claro enigma, publicado em 1951 pela
editora José Olympio.
Piscando a valer os olhos e pondo a mão
grossa no peito, o rapaz escancarou a boca de lábios espessos, de onde saía a
sua voz estridente como o cacarejar de um galo no cio. Recitou a poesia:
“Amar o perdido
deixa
confundido
este
coração.
Nada pode o
olvido
contra o sem
sentido
apelo do
Não.
As coisas
tangíveis
tornam-se
insensíveis
à palma da
mão.
Mas as
coisas findas,
muito mais
que lindas,
essas
ficarão.”
Depois
o jovem acrescentou, de maneira solene:
-Mestre
Drummond, o poeta Ezra Pound, desencarnado em 1972 na cidade de Veneza,
inspirou-se nesta sua poesia, a fim de escrever em português belos versos,
recebidos por minha pessoa num transe mediúnico.
Sem
demora, diante do espanto de Drummond e do meu, o “médium” gorducho declamou:
“Amar o perdido
não deixa
confundido
o meu
coração,
pois guardei
o teu beijo,
pleno de
desejo,
palpitante
de emoção.
Luar de
Veneza
banha a
minha alma,
tira a
tristeza,
afugenta a
solidão.
Drummond,
tenha a certeza,
você é meu
irmão!”
O
rapaz entregou a mim e a Drummond duas cópias da poesia do espírito de Ezra
Pound, salientando:
-Ezra me garantiu que estes versos, inspirados
como eu disse na poesia “Memória”, do livro Claro enigma, são superiores ao The return que ele gerou.
As
finas mãos de Drummond foram beijadas duas vezes pelo rapaz, apesar da
relutância do poeta:
-Não,
não, por favor!
O
beijoqueiro despediu-se e após ir embora, o itabirano pronunciou estas
palavras:
-Eu
duvido que esse rapaz tenha incorporado o espírito de Ezra Pound. Qual é a sua
opinião?
Fui
franco:
-Também
não sei, mas como já disse, possuo forte mediunidade, manifestada várias vezes.
E com você, já aconteceu algum fenômeno mediúnico?
Drummond
então me contou que em 1945, dois meses depois do falecimento de Mário de
Andrade, ele propôs a Vinicius de Moraes, no apartamento de Fernando Sabino,
invocarem o espírito do autor de Macunaima.
Vinicius, nessa época, fazia experiências mediúnicas, com a ajuda de Beatriz
Azevedo de Mello, a Tati de Moraes, sua primeira esposa. Por este motivo os
móveis do seu quarto de dormir se agitavam, produziam barulho.
Os
três, Vinicius, Drummond, Fernando Sabino, apagaram as luzes e concentraram-se,
para chamar o espírito de Mário de Andrade. Uniram os dedos de suas mãos, sobre
modesta mesa. O poeta carioca fechou as pálpebras, estremeceu e começou a
escrever numa folha de bloco, na qual foram aparecendo traços incompreensíveis,
garranchos. Ligeiro, Sabino substituía a folha, quando esta ficava cheia de
rabiscos, mas de repente Vinicius jogou esta frase no papel:
“Direito
de morrer de fome.”
Interrogaram
o espírito:
-O
que significa isto?
Silêncio
do desencarnado. Vinicius indagou:
-É
o Mário de Andrade?
Resposta
lacônica, fixada na folha:
-Não.
Fernando
Sabino sugeriu:
-Talvez
seja o espírito de um parente do Mário.
Outra
resposta lacônica:
-Avô.
O
“médium” Vinicius de Moraes, ato contínuo, no fim da experiência, pôs no papel
o nome Glorinha e depois outro nome feminino, Norma Leuzinger, uma amiga dele,
recém-falecida.
Perguntei
a Drummond:
-A
morte é o outro lado da vida, como a definiu o poeta Rainer Maria Rilke?
Exibindo
ar filosófico, o autor de Passeio na
ilha respondeu:
-Vou
citar uns versos curtos de Rudyard Kipling, inseridos no seu poema “A St.
Helena lullaby”, título que pode ser traduzido como “Cantiga de ninar de Santa
Helena.”
Num
inglês impecável, Drummond recitou:
“That no one knows
that no one knows
and no one ever will.”
(“Isto ninguém,
ninguém sabe,
nem jamais poderá saber”).
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