sábado, 22 de junho de 2019

DRUMMOND E O “MEDIUM” VINICIUS DE MORAES


Carlos Drummond de Andrade, conforme acentuei, era vítima de sua própria fama. Sentia-se tolhido com o assédio dos seus admiradores. Muitas vezes me confessou:
-Ah, Fernando, que saudade daquela vida livre em Itabira, durante o meu tempo de meninice! Quanta saudade das minhas inocentes caminhadas pela rua Estrela, no bairro da Água Fresca!
E o poeta me falou com carinho das suas andanças itabiranas pelos bairros do Areão, do Moinho Velho e da Abóbora, nomes registrados imediatamente por mim no meu caderninho. Drummond brincou:
-Você, anotando tudo, me dá a impressão de ser um detetive encarregado por um corno de registrar os locais dos encontros da esposa infiel com o amante.
Soltei uma risada e neste momento Maria Julieta entrou na sala:
-Papai, aquele rapaz do Jardim Botânico...
Achava-se ao lado da filha de Drummond um jovem obeso, de fisionomia arredondada como o formato de certas caixas de pizza. Ele se adiantou e disse:
-Mestre, grande poeta!
Drummond não conteve a ironia:
-Estamos num país de mestres e de grandes poetas...
O moço emitiu um protesto:
-Carlos Drummond de Andrade é mesmo um mestre e um grande poeta!
-Obrigado, mas você me vê com lentes de aumento.
-O senhor é gênio, a man of genius, the genius of Brazil! Adoro a sua poesia “Memória”, do livro Claro enigma, publicado em 1951 pela editora José Olympio.
  Piscando a valer os olhos e pondo a mão grossa no peito, o rapaz escancarou a boca de lábios espessos, de onde saía a sua voz estridente como o cacarejar de um galo no cio. Recitou a poesia:

Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.

Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão.

Depois o jovem acrescentou, de maneira solene:
-Mestre Drummond, o poeta Ezra Pound, desencarnado em 1972 na cidade de Veneza, inspirou-se nesta sua poesia, a fim de escrever em português belos versos, recebidos por minha pessoa num transe mediúnico.
Sem demora, diante do espanto de Drummond e do meu, o “médium” gorducho declamou:

Amar o perdido
não deixa confundido
o meu coração,
pois guardei
o teu beijo,
pleno de desejo,
palpitante de emoção.

Luar de Veneza
banha a minha alma,
tira a tristeza,
afugenta a solidão.

Drummond, tenha a certeza,
você é meu irmão!

O rapaz entregou a mim e a Drummond duas cópias da poesia do espírito de Ezra Pound, salientando:
-Ezra me garantiu que estes versos, inspirados como eu disse na poesia “Memória”, do livro Claro enigma, são superiores ao The return que ele gerou.

As finas mãos de Drummond foram beijadas duas vezes pelo rapaz, apesar da relutância do poeta:
-Não, não, por favor!
O beijoqueiro despediu-se e após ir embora, o itabirano pronunciou estas palavras:
-Eu duvido que esse rapaz tenha incorporado o espírito de Ezra Pound. Qual é a sua opinião?
Fui franco:
-Também não sei, mas como já disse, possuo forte mediunidade, manifestada várias vezes. E com você, já aconteceu algum fenômeno mediúnico?
Drummond então me contou que em 1945, dois meses depois do falecimento de Mário de Andrade, ele propôs a Vinicius de Moraes, no apartamento de Fernando Sabino, invocarem o espírito do autor de Macunaima. Vinicius, nessa época, fazia experiências mediúnicas, com a ajuda de Beatriz Azevedo de Mello, a Tati de Moraes, sua primeira esposa. Por este motivo os móveis do seu quarto de dormir se agitavam, produziam barulho.
Os três, Vinicius, Drummond, Fernando Sabino, apagaram as luzes e concentraram-se, para chamar o espírito de Mário de Andrade. Uniram os dedos de suas mãos, sobre modesta mesa. O poeta carioca fechou as pálpebras, estremeceu e começou a escrever numa folha de bloco, na qual foram aparecendo traços incompreensíveis, garranchos. Ligeiro, Sabino substituía a folha, quando esta ficava cheia de rabiscos, mas de repente Vinicius jogou esta frase no papel:
“Direito de morrer de fome.”
Interrogaram o espírito:
-O que significa isto?
Silêncio do desencarnado. Vinicius indagou:
-É o Mário de Andrade?
Resposta lacônica, fixada na folha:
-Não.
Fernando Sabino sugeriu:
-Talvez seja o espírito de um parente do Mário.
Outra resposta lacônica:
-Avô.
O “médium” Vinicius de Moraes, ato contínuo, no fim da experiência, pôs no papel o nome Glorinha e depois outro nome feminino, Norma Leuzinger, uma amiga dele, recém-falecida.
Perguntei a Drummond:
-A morte é o outro lado da vida, como a definiu o poeta Rainer Maria Rilke?
Exibindo ar filosófico, o autor de Passeio na ilha respondeu:
-Vou citar uns versos curtos de Rudyard Kipling, inseridos no seu poema “A St. Helena lullaby”, título que pode ser traduzido como “Cantiga de ninar de Santa Helena.”
Num inglês impecável, Drummond recitou:

That no one knows
that no one knows
and no one ever will.”

(“Isto ninguém,
ninguém sabe,
                                 nem jamais poderá saber”).

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