segunda-feira, 17 de junho de 2019

Muito perigoso, fiquei preso em Cumbica!


Fiquei preso horas e horas na Base Aérea de Cumbica, no ano de 1974, durante o governo do general Médici. Narrei esse episódio à Comissão Nacional da Verdade. Ela foi ao meu lar, já disse em outro texto, a fim de registrar o depoimento do “muito perigoso e subversivo escritor Fernando Jorge”. Consultora da Comissão, a senhora Maria Luci Buff Migliori testemunhou o depoimento.
Começo a evocar o episódio usando palavras do poeta latino Horácio (65-8 a. de J.C), numa de suas sátiras. Ab ovo usque ad mala. Tradução: “do ovo até as maçãs”, do princípio até o fim. Dessa maneira se expressavam os romanos antigos, pois no início das refeições comiam ovos e no fim maçãs...
Antes de ser nomeado diretor da Divisão Técnica de Biblioteca da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, eu exerci nela o cargo de bibliotecário-chefe. Devido ao escândalo da construção do novo prédio do Poder Legislativo paulista, os militares fecharam a Assembleia em 1974. Só os funcionários lá compareciam diariamente.
Enquanto a Assembleia permanecia fechada, eu sempre recebia na Biblioteca a visita do jornalista Manuel Pais de Almeida, também funcionário do Legislativo e que num artigo elogiou a primeira edição do meu livro sobre o Aleijadinho. Fervoroso admirador do ministro Armando Falcão, da Justiça, aliás, da Injustiça, o Manuel o defendia das minhas incessantes porradas no lombo desse ministro sinistro. Eu dizia:
-Armando Falcão é um fascista, proíbe reuniões de estudantes, manifestações públicas corretas, enquadra cidadãos inocentes na Lei de Segurança Nacional. É tão fascista que proibiu a apresentação do Balé Bolshoi no Brasil e a circulação, aqui, dos livros de Tolstói, Tchecoff, Puskin, Gogol, Dostoiewski, só pelo motivo desses escritores clássicos serem russos. Além disso, como se fosse um comandante da Gestapo na Alemanha nazista, só anda protegido por onze agentes de segurança, armados de fuzis e metralhadoras.
Manuel, indignado, rebatia essas críticas. O meu colega Henrique Ricchetti, grande amigo e homem de Esquerda, logo me preveniu:
-Fernando, você foi dedurado pelo Manuel Pais de Almeida. Os militares vão levar você preso até a Base Aérea de Cumbica. Querem interrogá-lo.
Dito e feito. Um dia depois, às cinco horas da madrugada, dois soldados corpulentos, munidos de metralhadoras portáteis, levaram-me num jipe até à referida base aérea. Escoltado por ambos, fui metido num quarto pequeno da base, no qual apenas havia uma cama-beliche. Antes de trancarem a porta, um deles me informou:
-Dentro de dez minutos, quatro oficiais da Aeronáutica virão lhe fazer perguntas.
No quarto escuro, abafado, bem quente, um forno, era fevereiro, tentei abrir a janela, porém se achava fechada com um cadeado. Bati na porta. Munido de metralhadora, um soldado abriu-a e eu pedi:
-Como a janela está fechada com cadeado e o calor é insuportável, por favor, abra a janela.
Ele garantiu que os quatro oficiais tinham a chave do cadeado e logo apareceriam. Trancou a porta novamente e me sentei na beira da cama de baixo. Suava tanto que arranquei o paletó, a camisa e a calça, ficando só de cueca. Então compreendi, aquele quarto minúsculo correspondia a uma cela de prisioneiro. Acudiu-me este raciocínio: isto é tortura psicológica, um método para me apavorar, obrigar-me a cagar de medo, mas vou honrar os meus colhões.
Fiquei ali sozinho nove horas, faminto, sedento, quase nu, molhado de suor. Os quatro oficiais da Aeronáutica apareceram às três da tarde. Após abrirem o cadeado da janela, entrou um pouco de ar fresco e diante de um escrivão nanico, passaram a me interrogar. Eu afirmei, tirando os meus óculos:
-Podem furar os meus olhos, não sou alcaguete, dedo-duro, não vou delatar ninguém.
Eles se enfureceram:
-Contenha-se, nós não somos torturadores!
Perguntaram se eu era da Esquerda e respondi:
-Sou um democrata, um amante da liberdade, um inimigo de qualquer tipo de ditadura.

Salientaram que mais de vinte deputados iam ser cassados e sessenta funcionários, colegas meus, perderiam os seus cargos, por terem se apossado do dinheiro público. Enriqueceram-se, os deputados e os funcionários, com o superfaturamento na compra de materiais para a instalação da nova sede do Poder Legislativo. Um dos oficiais, no fim do interrogatório, quis conhecer a minha opinião. Fui incisivo:
-Juro, se os senhores provarem que eu, Fernando Jorge, apoderei-me do dinheiro público, fuzilem-me com um tiro na minha nuca. E façam a mesma coisa com qualquer deputado e qualquer funcionário da Assembleia, se enfiaram a mão nesse dinheiro.
Arregalaram os olhos, creio que não esperavam esta minha reação. Um deles falou:
-O senhor poderá ir embora. E fique sabendo, em breve, no espaço de vinte dias, os jornais vão publicar a lista desses deputados e funcionários corruptos.
Devolvido à liberdade, todos os dias eu lia os jornais, na ânsia de ver a tal lista. E nada. Oito meses fluíram. A lista continuava invisível, tão invisível como o homem invisível (The invisible man, livro de 1897), do novelista inglês Herbert George Wells (1866-1946). Em 1975, já no governo Geisel (1974-1979), eu fui cumprimentado, na Assembleia Legislativa ainda fechada, por dois cidadãos de chapéus enterrados nas suas testas. Tive a impressão de os conhecer. Identificaram-se, tirando os chapéus:
-Somos dois dos oficiais da Aeronáutica que interrogaram o senhor na Base Aérea de Cumbica.
-Ah, sim, mas a lista dos deputados e funcionários corruptos não foi até agora publicada pelos jornais. O que aconteceu?
-Não podemos dizer.
Eu insisti:
-Digam, não vou prejudicá-los.
Tanto insisti, que se abriram:
-Vamos dizer, porém não divulgue, lembre-se de que estamos sob uma ditadura.
Ambos me contaram:
-Descobrimos, após o seu depoimento, na conclusão do inquérito, que o Roberto Costa de Abreu Sodré, ex-presidente da Assembleia Legislativa, estava envolvido no escândalo do superfaturamento. Comunicamos o fato grave ao general Golbery do Couto e Silva, ministro do presidente Geisel, e este, após nove meses de silêncio, mandou arquivar o processo, anulá-lo, sob o pretexto de que a divulgação do fato iria prejudicar a imagem do governo, pois o Sodré se tornou um dos principais líderes civis do Movimento de 1964.
Comentei, estarrecido:
-Meu Deus, quanta hipocrisia, quanta podridão, quanta falta de ética por parte de um governo que se intitula defensor da moral pública!
Os dois oficiais da Aeronáutica abaixaram as cabeças, murmurando:
-Confessamos, a ordem do presidente Geisel nos envergonhou.
Última informação. Transcorridos alguns meses, correu na Assembleia esta notícia: encontraram o cadáver do Manuel Pais de Almeida no fundo do poço de um sítio do qual era proprietário. Ele teria sido assassinado pelas vítimas do seu dedo-durismo. Até espalharam em tom de brincadeira: eu, Fernando Jorge, mandei matá-lo. Virei, portanto, um escritor assassino, como o Gilberto Amado, que em 1915, no Rio de Janeiro, liquidou o poeta Aníbal Teófilo com vários tiros de revólver...

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