sábado, 22 de fevereiro de 2020

QUE ENTERRO BONITO!


Em 1974, durante um dos meus vários encontros com Juscelino Kubitschek no Banco Denasa (ele queria que eu escrevesse a sua biografia), perguntei ao ex-presidente:
  -O senhor ficou órfão com qual idade?
  Ele respondeu:
  -Com apenas três anos. Meu pai, João César de Oliveira, era caixeiro-viajante e morreu no início de 1905, vítima da tuberculose, sem completar os 34 anos. Lembro-me até hoje do seu enterro, do momento em que minha irmã Naná, de quatro anos, me chamou: "Vem cá, Nonô, vem ver o enterro bonito do papai”. O féretro ia em direção à igreja de São Francisco, de Diamantina, e eu e Naná, da sacada de nossa casa, dizíamos cho­rando: “Que enterro bonito o do papai, que enterro bonito!”
  Juscelino emocionou-se ao narrar isto. Uma discreta lágrima desceu pelo seu rosto. Depois prosseguiu:
  -Minha mãe se chamava Júlia. Bem pobre, quase na miséria, viúva, percorria todos os dias, como professora, nove quilômetros, a fim de dar aulas. Antes do galo cantar, ela estava de pé. Tinha o costume de prometer, quando saía: "Hei de criar vocês dois, custe o que custar".
  Os olhos de Juscelino brilhavam e pareciam ver o passado. Indaguei:
  -A sua mãe só teve dois filhos?
  -Não, teve três, eu, a Maria da Conceição, apelidada de Naná, e a Eufrosina, que só viveu poucos meses.
  -E o seu pai, o senhor conserva dele alguma lembrança?
  -Mal o conheci, porém minha mãe contou, após a sua morte, que o esposo, pressentindo a aproximação do fim, lhe dirigiu estas palavras, com a voz quase inaudível: “Júlia, eu tenho duas calças boas, uma velha e uma nova. Peço a você que me vista a mais nova, pois pretendo me apresentar de maneira elegante no outro mundo”.
  JK permaneceu em silêncio alguns segundos e acrescentou:
  -Anos e anos, inúmeras vezes, vi a minha mãe abrir uma gaveta para beijar, lacrimosa, a calça velha do meu pai.
  Eu quis saber:
  -A pobreza do seu lar, nessa época, era muito grande?
  -Era enorme - disse Juscelino - e de tal envergadura que os móveis da nossa casa foram feitos de caixotes de sabão, por minha mãe e a minha irmã Naná. No meu quarto estreito só cabia a cama e a mesa minúscula, também feita de caixote. E acredite, eu andava descalço pela rua da Quitanda, pelo Largo da Luz, pela praça Lobo de Mesquita, por todas as vias públicas de Diamantina. Uma vez, ao entrar na Igreja de Nossa Senho­ra das Mercês, de fachada simples, mas com ricos entalhes de madeira na capela-mor, o padre dessa igreja me perguntou: “Menino, por que você es­tá descalço? Eu expliquei: “E porque o meu par de sapatos ficou tão ve­lho, tão estragado, que eu quero não usar muito, para não gastar ainda mais a sola”.
  Sorrindo, Juscelino Kubitschek acrescentou:
  -Mas sempre, ao devorar o meu prato predileto - o Chico Angu - frango com quiabo e angu de fubá, eu esquecia logo a minha pobreza e até me sentia rico...

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