quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

Camões violou uma lei gramatical do Aluizio Maranhão e da sua equipe!


A soberania do homem está oculta no seu conhecimento
(“The sovefeignty of man lieth in his knowledge”)
Francis Bacon (1561-1626), ensaísta e filósofo inglês, na sua obra “Praise of knowledge”



Eduardo Larrigue Berthold, residente em Alegrete, no Rio Grande do Sul, enviou-me uma carta na qual reproduziu esta quadra, composta pelo juiz gaúcho Afif Jorge Simões:

“Julgar briga de patrão
É coisa que não me apraza.
O que me preocupa, isso sim,
São as bombas lá em Gaza”

O juiz-poeta escreveu-a para comentar uma ação de danos morais, movida por um empresário. Leitor assíduo da nossa coluna, Eduardo quer saber se os versos da quadra estão corretos.
Na minha opinião, se o doutor Afif tivesse empregado o verbo aprazer e não o verbo aprazar, a sua quadra ficaria irreprochável. Gostou deste adjetivo, Eduardo? Significa o que não merece crítica, o que é impecável. Vem do vocabulário francês reproche (afronta, opróbrio, vitupério, censura). Aliás, em português há o substantivo reproche, como sinônimo de repreensão, e Machado de Assis o utilizou no livro “Papéis avulsos”. Os puristas condenam a palavra irreprochável, por se tratar de um galicismo, e desejam que ela seja substituída pelos adjetivos impecável ou irrepreensível. Eu a usei porque centenas de palavras do nosso idioma são oriundas da pátria do presidente Nicolas Sarkozy, bastando citar as seguintes: assembleia, avenida, banalidade, bastardo, bicicleta, bijuteria, blusa, boné, brochura, cabotino, camelô, carnê, cavanhaque, chalé, chantagem, chofer, chefe, chique, claque, cliente, cobaia, colibri, creche, cretino, deboche, decalque, departamento, detalhe, elite, empresa, etiqueta, filé, finanças, folia, gafe, galante, garagem, gravata, guardanapo...
Chega! Parei nas palavras de origem francesa que começam com a letra g. Ora, se todas elas já se incorporaram ao rico acervo da língua portuguesa, agora pergunto: por qual motivo devemos eliminar o emprego do irreprochável? Então, se for assim, não convém mais usar as palavras que enfileirei acima. É uma questão de lógica. Detesto preconceitos de qualquer tipo. Se eu fosse solteiro e me apaixonasse por uma mulher completamente verde ou azul, ou vermelho, juro, não hesitaria em desposá-la. Endosso esta frase de Voltaire, colocada no seu “Dictionnaire philo sophique”:
“O preconceito é uma opinião sem julgamento”.
(“Le préjugé est une opinion sans jugement”).
Todavia, voltando à quadra do juiz Afif Jorge Simões, repito que ele acertaria se tivesse usado o verbo aprazer (transitivo ou transitivo indireto), que significa agradar, interessar, causar prazer, em vez do verbo aprazar (transitivo direto), que significa marcar prazo ou fixar, ajustar, combinar. Declarou o meritíssimo:
Julgar briga de patrão
É coisa que não me apraza”.
O correto deve ser deste modo:
É coisa que não me apraz”.
Ele enfiou o apraza na quadra para rimar com Gaza:
O que me preocupa, isso sim,
São as bombas lá em Gaza”.
Por favor, meritíssimo, não me processe devido a este reparo. E ofereço ao senhor, com o intuito de enriquecer a sua cultura literária e gramatical, uma frase do grande escritor português Camilo Castelo Branco, onde existe o correto emprego do verbo aprazer:
Apraz-me tudo que te contenta”.
(“Amor de salvação”, capítulo XVII)

*   *   *

Luísa Isabel Soares de Moura, estudante de Jornalismo no Rio de Janeiro, estranhou a crítica de Aluizio Maranhão e da sua equipe a esta passagem do comentário “Caminho natural”, publicado na edição do dia 6 de fevereiro do presente ano no jornal “O Globo”:
“Mas se é para falar de evolução, não há por que não usar aqui, o que se vê nas democracias mais avançadas”.
Aluizio e o seu grupo de onbudsmans garantem que aí falta uma vírgula depois do mas e que a vírgula junto do aqui foi mal usada. Argumento do grupo: o trecho deve ser corrigido por ser uma “circunstância interposta”. Vejam como esses daltônicos policiais da língua portuguesa querem a construção da frase:
“Mas (vírgula) se é para falar de evolução não há por que não usar aqui (sem vírgula) o que se vê nas democracias mais avançadas”.
De fato a segunda vírgula é desnecessária, porém a tal “circunstância interposta” é uma besteira, um pernosticismo. Não é preciso colocar a vírgula depois do mas, pois ali ela seria um tropeço, um calhau, prejudicaria a fluência da frase. Somente deve haver vírgula depois do mas quando o seguimento lógico da oração é interrompido. Lei da estilística. Se o critério do Aluizio se mostra correto, Camões errou ao escrever isto na estrofe quinta do canto I de “Os Lusíadas”:
Mas de tuba canora e belicosa,
Que o peito acende e a cor ao gesto muda”.
Eis como ficaria a desastrada correção do Aluizio e dos seus fiscais:
Mas (vírgula) de tuba canora”...
Acreditem, se aceitarmos a censura lelé da cuca dos onbudsmans do excelente jornal do Marinhos, teremos de admitir que o corritíssimo Camões persistiu no erro, pois não meteu uma vírgula depois do mas na estrofe trinta e seis do canto I do seu soberbo poema?
Mas Marte, que da deusa sustentava
Entre todas as partes em porfia...”
Teimoso, incorrigível, o épico luso ainda se atreveu a parir estes três versos na estrofe trinta e nove do canto I da sua obra-prima:
Mas esta tensão sua agora passe,
Porque enfim vem de estômago danado
Que nunca tirará alheia inveja
Camões, imortal vate/zarolho, não grudou – ò crime teratológico! – uma vírgula neste último mas e nos outros de “Os Lusíadas”. Portanto violou uma lei gramatical do Aluizio Maranhão e da equipe que ele chefia, lotada no Departamento de Ordem Política e Social da Língua Portuguesa (DOPSLP).

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