O uso do
punhal, lançado pela editora Escrituras, prova
que ele é um grande poeta da língua portuguesa. Ninguém ilude a posteridade.
Esta juíza imparcial o colocará entre os maiores da moderna literatura brasileira.
Talento é talento e reluz como os diamantes sem jaça.
Impressionou-me, no livro O uso do punhal, a densidade de sua
poesia originalíssima. Não posso compará-lo a nenhum outro grande poeta nosso.
Apenas afirmo que ele está na mesma altura de Drummond, de Manuel Bandeira, de
Cassiano Ricardo. Declamei, com voz cheia de emoção, estes versos da página 52
do seu livro:
“No rosto
a cicatriz,
corte
fundo para sempre,
ferida
que não se diz.
Não ficou
marca de sangue
mas a
agulha que penetra
as sílabas
vãs de letras vis.
Na pele a
cicatriz,
navalha
que risca e escreve
as letras
finas do giz.
Na boca a
cicatriz,
o
silêncio que se consente
e nunca
se contradiz.
Nos
dentes a cicatriz,
daquele
que morrer não pôde,
não pôde
porque não quis”.
O virtuosismo da composição é admirável,
porém mais admirável é o seu conteúdo emocional. Só quem sofreu e se desiludiu,
após mergulhar no fundo abismo da angústia indelével, poderá sentir com mais
intensidade a beleza dessa poesia repleta de dor digna, estóica. Álvaro Alves
de Faria, no poemeto “A cicatriz”, exprime o inexprimível, atingindo o mesmo
patamar, a mesma profundidade do Fernando Pessoa que escreveu os seguintes
versos:
“Contemplo
o lago mudo
Que uma
brisa estremece,
Não sei
se penso em tudo
Ou se tudo
me esquece.
O lago
nada me diz,
Não sinto
a brisa mexê-lo,
Não sei
se sou feliz,
Nem se
desejo sê-lo.
Trêmulos
vincos risonhos
Na água
adormecida.
Por que
fiz eu dos sonhos
A minha
única vida?
O aniquilamento, na poesia de Álvaro, é ressurreição,
metamorfose, como a crisálida se transforma em borboleta:
“Três
golpes do lado esquerdo
bastam
para pôr fim a tudo:
depois é
só viver a eternidade”.
Observem a sutileza. Álvaro não escreveu
“viver na eternidade” e sim “viver a eternidade”, pois na primeira expressão há
materialismo, apego à carne, e na segunda a existência imaterial, espiritual, a
libertação exaltada pelo simbolista Camilo Pessanha (1867-1926), poeta luso
viciado em ópio e autor do volume Clepsidra,
aparecido em 1920:
“Roubos,
assassinatos!
Horas
jamais tranquilas,
Em brutos
pugilatos
Fracturam
as maxilas...
E eu sob
a terra firme,
Compacta,
recalcada,
Muito
quietinho. A rir-me
De
não me doer nada.”
Dilaceramento é a poesia de Álvaro Alves
de Faria, mas ela o prende à vida. Sem a poesia, Álvaro deixaria de respirar:
“A poesia
feriu-me para sempre
no
tropeço de um poema que não termina”.
Augusto dos Anjos, no soneto “Infeliz”,
de 1901, aconselhou à sua alma:
“E fica
no teu ermo entristecida,
Alma
arrancada do prazer do mundo,
Alma
viúva das paixões da vida”.
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