domingo, 24 de fevereiro de 2019

DRUMMOND PERDOOU O AGRIPPINO...


Carlos Drummond de Andrade, quando foi lançada a quarta edição do meu livro sobre o Aleijadinho (atualmente na sétima), analisou o prefácio da obra, de autoria do Agrippino Grieco, visto na época como o maior crítico literário do Brasil:
-Você obteve elogios de um voraz bicho-papão da nossa literatura, tão guloso, tão triturador de escritores e poetas medíocres, que quanto mais devorava, mais queria triturar e devorar.
Eu respondi:
-É verdade, mas você também recebeu algumas carícias da fera do Méier (Agrippino morava nesse subúrbio carioca), afagos inseridos no livro Evolução da poesia brasileira, publicado em 1932 pela Ariel Editora.
-As carícias – emendou o poeta – apareceram misturadas com mordidas. Quer ver?
Drummond levantou-se da cadeira e pegou numa estante o citado livro do Agrippino. E passou a ler, em voz alta, trechos da parte referente a ele:
“Inteligência em que há real personalidade... A rigor, não está ainda absolutamente seguro do seu pensamento, absolutamente seguro dos seus meios de expressão... cai no artificialismo da ingenuidade que o espírito mata logo... nota-se-lhe uma contenção robusta e sóbria, de quem sabe dominar a matéria poética... o sr. Carlos Drummond sabe prender-nos...”
Depois de ler estas passagens da crítica do Agrippino, o itabirano salientou:
-Repito, Fernando, são carícias misturadas com mordidas. Carícias nas quais se sente o peso da pata do tigre. Desculpe-me se você é amigo e admirador do Agrippino Grieco, porém observe a sua incoerência. Ele garantiu que em minha inteligência há “real personalidade” e depois vê insegurança no meu pensamento e nos meus recursos de expressão. Olhe, se possuo “real personalidade”, isto pressupõe firmeza no campo da literatura e portanto é inadequado chamar-me de inseguro...
Comecei a rir e o poeta também. Drummond admitiu:
-O Agrippino é espirituoso, reconheço. Certa ocasião saíram de mim estas palavras: “Desconfio que escrevi um poema”. Ele comentou: “Estes mineiros são muito desconfiados”...
Duas frases de Drummond, a propósito do livro Evolução da poesia brasileira:
-Na parte concernente à minha pessoa, o Agrippino acentua nessa obra que eu às vezes desço a “efeitos fáceis”. Para provar isto, cita alguns versos meus.
Drummond se pôs a recitar os versos da sua poesia “Política literária”:

“O poeta municipal
discute com o poeta estadual
qual deles é capaz de bater o poeta federal.
Enquanto isso o poeta federal
tira ouro do nariz.”

Ele perguntou se eu podia citar algumas frases irreverentes do Agrippino. Fui dizendo:
-Só houve um cristão, Cristo. A burrice é contagiosa, o talento não. Duas ruínas: a casa e o dono. Fulano é mais mentiroso que elogios de epitáfios. Oswaldo Orico, escritor dos quatro zeros no nome. Aquele canalha se estorcia, à maneira de um verme pisado. Gustavo Barroso é autor de livros tediosos como salas de espera. Estilo mais engomado que o hábito de uma freira do Colégio Nossa Senhora de Sion. As horas de ócio do juiz Ataulfo de Paiva são 24, todos os dias. O principal personagem do romance Mulheres fatais, do Cláudio de Sousa, é o tédio. Sílvio Romero e José Veríssimo insultavam-se mutuamente e ambos tinham razão. Em geral, a Academia Brasileira de Letras elege apenas um animal, agora elegeu dois: Carneiro Leão (representante do Brasil no Primeiro Congresso da UNESCO, realizado em Londres, no ano de 1945). Algo simiesco, quase idêntico a um orangotango, Catulo da Paixão Cearense incorria em três mistificações: não era Catulo (insigne poeta romano), não tinha Paixão, a não ser por si mesmo, e sequer era cearense, pois nasceu no Maranhão.
À medida que eu, dotado de boa memória, soltava estas frases do Agrippino, o Drummond não reprimia as suas risadas. E declarou:
-Fernando, devido a tais frases, sinto-me no dever de perdoá-lo, por ter me criticado injustamente.
Contei então ao poeta que o autor de Estátuas mutiladas recusou uma homenagem do governo do Rio de Janeiro, disposto a dar o seu nome a um viaduto do Méier. Agrippino reagiu:
-Passar por cima de mim? Só depois de morto!
Embora fosse bem econômico no gargalhar, Carlos Drummond de Andrade gargalhou como um cidadão em paz com o mundo e em pleno gozo de uma boa saúde...

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