Carlos
Drummond de Andrade, quando foi lançada a quarta edição do meu livro sobre o
Aleijadinho (atualmente na sétima), analisou o prefácio da obra, de autoria do
Agrippino Grieco, visto na época como o maior crítico literário do Brasil:
-Você
obteve elogios de um voraz bicho-papão da nossa literatura, tão guloso, tão
triturador de escritores e poetas medíocres, que quanto mais devorava, mais
queria triturar e devorar.
Eu
respondi:
-É
verdade, mas você também recebeu algumas carícias da fera do Méier (Agrippino
morava nesse subúrbio carioca), afagos inseridos no livro Evolução da poesia brasileira, publicado em 1932 pela Ariel
Editora.
-As
carícias – emendou o poeta – apareceram misturadas com mordidas. Quer ver?
Drummond
levantou-se da cadeira e pegou numa estante o citado livro do Agrippino. E
passou a ler, em voz alta, trechos da parte referente a ele:
“Inteligência
em que há real personalidade... A rigor, não está ainda absolutamente seguro do
seu pensamento, absolutamente seguro dos seus meios de expressão... cai no
artificialismo da ingenuidade que o espírito mata logo... nota-se-lhe uma
contenção robusta e sóbria, de quem sabe dominar a matéria poética... o sr.
Carlos Drummond sabe prender-nos...”
Depois
de ler estas passagens da crítica do Agrippino, o itabirano salientou:
-Repito,
Fernando, são carícias misturadas com mordidas. Carícias nas quais se sente o
peso da pata do tigre. Desculpe-me se você é amigo e admirador do Agrippino
Grieco, porém observe a sua incoerência. Ele garantiu que em minha inteligência
há “real personalidade” e depois vê insegurança no meu pensamento e nos meus
recursos de expressão. Olhe, se possuo “real personalidade”, isto pressupõe
firmeza no campo da literatura e portanto é inadequado chamar-me de inseguro...
Comecei
a rir e o poeta também. Drummond admitiu:
-O
Agrippino é espirituoso, reconheço. Certa ocasião saíram de mim estas palavras:
“Desconfio que escrevi um poema”. Ele comentou: “Estes mineiros são muito
desconfiados”...
Duas
frases de Drummond, a propósito do livro Evolução
da poesia brasileira:
-Na
parte concernente à minha pessoa, o Agrippino acentua nessa obra que eu às
vezes desço a “efeitos fáceis”. Para provar isto, cita alguns versos meus.
Drummond
se pôs a recitar os versos da sua poesia “Política literária”:
“O poeta
municipal
discute
com o poeta estadual
qual deles
é capaz de bater o poeta federal.
Enquanto
isso o poeta federal
tira ouro
do nariz.”
Ele
perguntou se eu podia citar algumas frases irreverentes do Agrippino. Fui
dizendo:
-Só
houve um cristão, Cristo. A burrice é contagiosa, o talento não. Duas ruínas: a
casa e o dono. Fulano é mais mentiroso que elogios de epitáfios. Oswaldo Orico,
escritor dos quatro zeros no nome. Aquele canalha se estorcia, à maneira de um
verme pisado. Gustavo Barroso é autor de livros tediosos como salas de espera.
Estilo mais engomado que o hábito de uma freira do Colégio Nossa Senhora de
Sion. As horas de ócio do juiz Ataulfo de Paiva são 24, todos os dias. O
principal personagem do romance Mulheres
fatais, do Cláudio de Sousa, é o tédio. Sílvio Romero e José Veríssimo
insultavam-se mutuamente e ambos tinham razão. Em geral, a Academia Brasileira
de Letras elege apenas um animal, agora elegeu dois: Carneiro Leão
(representante do Brasil no Primeiro Congresso da UNESCO, realizado em Londres,
no ano de 1945). Algo simiesco, quase idêntico a um orangotango, Catulo da
Paixão Cearense incorria em três mistificações: não era Catulo (insigne poeta
romano), não tinha Paixão, a não ser por si mesmo, e sequer era cearense, pois
nasceu no Maranhão.
À
medida que eu, dotado de boa memória, soltava estas frases do Agrippino, o
Drummond não reprimia as suas risadas. E declarou:
-Fernando,
devido a tais frases, sinto-me no dever de perdoá-lo, por ter me criticado
injustamente.
Contei
então ao poeta que o autor de Estátuas
mutiladas recusou uma homenagem
do governo do Rio de Janeiro, disposto a dar o seu nome a um viaduto do Méier.
Agrippino reagiu:
-Passar
por cima de mim? Só depois de morto!
Embora
fosse bem econômico no gargalhar, Carlos Drummond de Andrade gargalhou como um
cidadão em paz com o mundo e em pleno gozo de uma boa saúde...
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