Carlos Drummond de Andrade me contou que no ano de 1934,
redator em Belo Horizonte do Estado de
Minas e do Diário da Tarde, foi para o Rio de
Janeiro, quando Gustavo Capanema exercia as funções de ministro da Educação e
da Saúde Pública, nomeado por Getúlio Vargas, eleito presidente da República
pela Assembleia Constituinte daquele ano.
O poeta passou a ser o chefe do gabinete de Capanema. Um
velho amigo seu, o advogado Rodrigo Melo Franco de Andrade, obteve o cargo de
diretor do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Mais tarde
Drummond se tornaria funcionário desse órgão.
Segundo as palavras do poeta, Rodrigo tinha o pseudônimo de
Esmeraldino Olimpio. Era, pelo tronco paterno, bisneto de Rodrigo José Ferreira
Bretas, primeiro biógrafo do Aleijadinho, e pelo tronco materno, sobrinho
tetraneto de Francisco de Melo Franco, autor do célebre poema satírico O reino da estupidez, publicado em 1819.
Um tio de Rodrigo foi o excelente escritor Afonso Arinos,
nascido na mineira Paracatu, autor de O mestre de campo, romance de
costumes, e do drama histórico O
contratador de diamantes, obra-prima do
teatro brasileiro, com ação que decorre no Tijuco (atual Diamantina), e cujo
personagem principal é Felisberto Caldeira Brant (o contratador), vítima do
despotismo da Coroa Portuguesa. Daí a certeza: o vírus benfazejo da literatura
estava no sangue de Rodrigo e o estimulou a gerar os contos do livro Velórios,
aparecido em 1936, na época do inicio da Guerra Civil Espanhola.
A casa de Esmeraldino Olímpio, em Copacabana,
transformou-se num ponto de reuniões de intelectuais. Drummond participava
dessas reuniões e delas faziam parte o pintor Cândido Portinari, o historiador
Otávio Tarquinio de Sousa, os poetas Vinicius de Moraes e Manuel Bandeira, os
escritores Gastão Cruls, Lúcia Miguel Pereira, Francisco de Assis Barbosa,
Afonso Arinos de Melo Franco, Sérgio Buarque de Holanda.
–Eu conversava horas a fio com o Sérgio – frisou Drummond –
Ele me disse que em 1922, na casa de Ronald de Carvalho, situada na Rua Humaitá
do Rio de Janeiro, ouviu o Mário de Andrade declamar o seu poema Pauliceia desvairada, marco do nosso Modernismo. Achavam-se presentes, nessa ocasião, o
Teixeira Soares, o Peregrino Júnior, o Ribeiro Couto, o Osvaldo Orico, o Oswald
de Andrade, o Manuel Bandeira, o Renato Almeida, o Austregésilo de Ataíde. A
leitura produziu em todos forte impacto, mas escandalizou o Osvaldo Orico,
poeta medíocre, enfadonho, futuro membro da Academia Brasileira de Letras.
Drummond me informou, em seguida, que no ano de 1924 o
Sérgio Buarque de Holanda havia fundado, com Prudente de Moraes, neto, a
revista Estética, de vanguarda e curta duração. Saíram apenas três números.
Colaboraram nessa revista o próprio Drummond, o Aníbal Machado, o Graça Aranha,
o Álvaro Moreyra.
Sempre curioso, perguntei ao poeta:
–Diga-me, você e o Sérgio se agarraram numa luta corporal?
Luta tão feia, tão violenta, que fez ambos rolarem no chão? É verdade ou é
mentira?
A resposta me surpreendeu:
–Pura verdade. Antes do pugilato o Sérgio se abria comigo,
em confidências. Cheio de emoção, de nostalgia, revelou a mim que aos onze anos
de idade o semanário infantil O Tico-Tico publicou a sua valsinha “Vitória-régia” e que aos dezoito
anos escreveu o seu primeiro artigo, intitulado “Originalidade literária”.
–E o motivo da briga?
Drummond explicou:
O Sérgio Buarque de Holanda tinha uma namorada, lá no
Ministério da Educação. Ela trabalhava no meu gabinete. Moça bonita, simpática,
muito vaidosa, de bunda enorme, bem arredondada. Uma bunda abundante, como as
das mulheronas dos quadros do pintor flamengo Rubens.
–Afinal de contas – perguntei sem conter o riso – o que
levou o Sérgio a se engalfinhar com você?
–Em estado de fúria, espumejando, ele invadiu o
meu gabinete, pois a bunduda lhe declarou que eu a assediava, queria transar
com ela. Juro, não fiz isto, apenas me mostrava gentil, nada mais...
Diante do Sérgio, e sem se descontrolar, Drummond negou
tudo, mas o possesso o agrediu com um soco. Os óculos do poeta voaram. Ambos se
atracaram, como galos numa rinha. Sérgio berrava, chamando Drummond de canalha.
Logo rolaram no chão e os dois tiveram que ser apartados.
O poeta concluiu:
–A nadeguda era leviana, Fernando, inventou a história para
enciumar o Sérgio. De modo constante o ciúme, filho degenerado do amor ou da
paixão, contrai matrimônio com a loucura. E veja a ironia, eu e o Sérgio
deixamos de ser amigos, porém o Chico Buarque de Holanda, seu filho, gosta de
mim, me abraça, vive me elogiando...
Após encerrar o comentário, Drummond quis conhecer a minha
opinião sobre o livro mais famoso do ex-amigo, o ensaio Raízes do Brasil. Não hesitei:
–Essa obra do pai do Chico é de 1936, mas no meu raciocínio
a sua tese, de que a colonização lusa foi vitoriosa no Brasil por causa da
perfeita identificação do português com a nossa terra, a sua tese não é
inovadora, original, pois três anos antes, em 1933, Gilberto Freyre já a
defendera de modo mais minucioso, abrangente, no seu clássico livro Casa-Grande & Senzala, desdobramento de uma tese de Freyre apresentada em 1922
na Universidade de Colúmbia.
–Se é assim – Drummond deduziu – há lógica no seu
julgamento. E contra ela, a lógica, a interpretação falsa se pulveriza,
desmorona.
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Escritor e
jornalista, Fernando Jorge é autor de “Drummond e o elefante Geraldão”,
que acaba de ser lançado pela Editora Novo Século
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