Na seção “Mistifório”, de O trem (maio de 2013), o meu
colega Marcos Caldeira Mendonça informou que Mariza Guerra de Andrade lançará
em breve, pela editora Autêntica, o livro Anel Encarnado, biografia do
jornalista cearense Raimundo Magalhães Júnior. Todas biografias devem ser
bem-vindas, se estão documentadas com firmes, inabaláveis alicerces fincados no
solo da verdade. A colega Mariza, brilhante colaboradora desse mensário, possui
credenciais para realizar o seu trabalho de biógrafa, mas vou descrever aqui
episódios desconhecidos da vida do Magalhães. Acontecimentos lamentáveis.
Em 1963, o meu livro Vida e poesia de Olavo Bilac
permanecia na lista dos mais vendidos, como se viu por uma pesquisa do jornal O Globo,
divulgada na edição do dia 18 de outubro desse matutino, no citado ano. Devido
a tal fato e a algumas revelações do livro que geraram escândalo, polêmicas, o
jornalista Justino Martins, diretor da revista Manchete, quis publicar uma
reportagem sobre a obra, pois pela primeira vez no Brasil um biografia se
tornara best-seller. Convidado, fui à redação da revista e lá, enquanto falava
com o secretário Arnaldo Niskier, ouvi gritos, um berreiro, o barulho forte de
uma briga, de uma discussão feroz. Surpreso, indaguei ao Niskier:
-Diga-me, está havendo aqui um briga?
Arnaldo Niskier, futuro presidente da Academia Brasileira
de Letras, confirmou a minha impressão:
-Sim, está havendo uma briga. É o Raimundo Magalhães Júnior
que discute com o Justino Martins, porque este quer mandar fazer uma reportagem
sobre o seu livro e o Magalhães não quer. Ele alega que a documentação da sua
obra é suspeita.
Vermelho de cólera, eu reagi:
-Suspeita? Pois então quero que ele prove isto!
Sorridente, o Arnaldo Niskier bateu com a mão direita no
cotovelo do seu braço esquerdo e me acalmou:
-Não se irrite, Fernando, o Raimundo está com
dor-de-cotovelo, com uma bruta inveja do sucesso do seu livro, porque as
biografias dele não são muito vendidas, ficam encalhadas nas livrarias...
A reportagem sobre a minha obra, apesar da oposição do
Magalhães, saiu na edição do dia 23 de novembro de 1963 da Manchete,
a revista mais importante do Brasil, naquela época. Ela foi feita pelo
jornalista Esdras Passaes, ocupa três páginas e recebeu o seguinte título:
“Olavo Bilac passado a limpo”. Eis início da reportagem:
“Um homem magro (eu, Fernando Jorge), meio místico, ar de
profeta oriental, surge no cenáculo literário com um livro-bomba na mão,
causando uma das maiores celeumas dos últimos tempos entre os homens de
letras”.
Fulo de ódio, devorado pela inveja, o Magalhães publicou no
Diário Carioca, em 24 de novembro de 1963, logo depois do aparecimento da
reportagem, um extenso artigo contra o meu livro. O texto exibia este título,
“Um biógrafo de Olavo Bilac”, e no fim da lenga-lenga o autor defecou esta
cretinice:
“...podendo incidir num anátema de Fernando Jorge, direi
francamente: ainda prefiro um bom chute do Pelé.”
Entrevistado por Flávio Cavalcanti, no seu programa de
televisão, ele quis saber de mim:
-O que você achou da frase do Raimundo Magalhães Júnior sobre
o seu livro, ao afirmar que prefere, em vez de sua obra, um bom chute do Pelé?
Respondi, de forma natural:
-Eu também prefiro um bom chute do Pelé, mas com uma
condição: desde que a bola seja a cabeça horrorosa do Raimundo Magalhães
Júnior...
Indo depois à casa do meu amigo Vianna Moog, membro da
Academia Brasileira de Letras (casa número 23, da rua Marquês de Pinedo, no
bairro carioca de Laranjeiras), o ensaísta de Heróis da decadência me esclareceu:
-Fernando, o Magalhães tem atacado o seu livro porque você
cortou a asa dele. Antes do lançamento do seu livro, ele vivia dizendo, lá na
Academia, que ia publicar a biografia definitiva do Olavo Bilac, mas aí
apareceu a sua e o Raimundinho se sentiu frustrado.
Lembro-me de apenas ter respondido isto ao escritor gaúcho:
-Que inveja a desse sujeito, hem? Na minha opinião ele não
devia chamar-se Magalhães e sim Cagalhães, já que bosteja até pela boca.
Ainda
ouço, transcorridos tantos anos, a gargalhada retumbante do inesquecível Vianna
Moog...
* * *
Agora
mostrarei como o biografado por Mariza Guerra de Andrade era agente de uma
ditadura de modelo fascista. Desculpe-me, Mariza, se vou desiludi-la.
O
meu amigo Carlos Heitor Cony me contou, em 1975, no decorrer de um almoço na
sede da Manchete, que quando o
Magalhães trabalhava com ele nessa revista, uma noite o cearense nascido em
Ubajara se excedeu na bebida e meio alto, porém lúcido, resolveu confessar:
-Sabe
de uma coisa, Cony? A maior ambição da minha vida era ser diplomata, eu queria
ser cônsul ou embaixador, entrar para o Itamaraty. Fui então procurar, em 1927,
o Otávio Mangabeira, ministro das Relações Exteriores no governo do presidente
Washington Luís. Expus a ele o meu desejo e o Mangabeira, friamente, afirmou
que eu nunca poderia ser diplomata, porque sou vesgo, muito feio, e a minha
estatura é bem baixa, quase a de um anão!
Perguntei
ao Carlos Heitor Cony:
-E
depois, ele se abriu ainda mais?
-Abriu-se.
Soltou estas palavras: mas me vinguei, Cony, me vinguei do Otávio Mangabeira,
porque quando ele, como inimigo do Getúlio, estava exilado em Nova York, eu me
dirigi à sede do Reader’s Digest,
onde o Otávio fazia traduções do inglês para o português e declarei aos
diretores dessa revista, na minha função de agente do Estado Novo, que se eles
continuassem a lhe dar trabalho, o ditador Getúlio Vargas, meu chefe, não iria
permitir a circulação do Reader’s Digest
no Brasil. E por causa disso o Mangabeira foi demitido de modo sumário.
Não
pude deixar de comentar:
-Que
baixeza, que ato torpe!
Contei
ao Cony, em seguida, que fui confidente do jornalista Paulo Duarte. Este me
disse que também estando exilado em Nova York, como inimigo da ditadura do
Getúlio, onde produzia na grande cidade uma crônica diária para a National Broadcasting, o Raimundo foi
até a sede dessa emissora e pediu, em nome do ditador do Brasil e da política
da boa vizinhança, o imediato afastamento do “perigoso” Duarte. Consequência: o
jornalista perdeu o emprego na hora.
Depois
o Magalhães se apressou a ir até o Museu de Arte Moderna de Nova York, situado
na West 53rd Street, na qual o Paulo Duarte, para sobreviver, incumbido pelo
museu, executava inocentes trabalhos de pesquisa. O dedo-duro compareceu diante
do senhor Philips Goodwin, diretor do estabelecimento, e começou a explicar:
-Vim
à sua presença a fim de informá-lo, com autorização do governo do meu país, que
o presidente Roosevelt dos Estados Unidos e o ditador Getúlio Vargas do Brasil,
ligados por uma aliança política, militar e econômica, não querem que o
subversivo Paulo Duarte trabalhe no seu museu.
Imperturbável,
o senhor Philips Goodwin levantou-se da sua cadeira e todo rígido, empinado,
pronunciou estas duas frases:
-Fique
o senhor sabendo que o presidente Roosevelt e o ditador Getúlio Vargas não
mandam nada aqui, no Museu de Arte Moderna de Nova York. E por favor, queira
retirar-se.
Foi
assim, conforme me narrou o próprio Paulo Duarte, que o senhor Philips Goodwin
“botou para fora o Raimundo Magalhães Júnior, sujeito sem predicados”, agente
de uma ditadura de modelo fascista num país da América do Sul...
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