Conforme
narrei no meu livro Drummond e o elefante Geraldão, fui amigo íntimo do
presidente Jânio Quadros. Ele morava perto do meu lar, numa casa térrea da rua
9 de Julho, número 880, em frente à Chácara Flora, no bairro Alto da Boa Vista,
da cidade de São Paulo. Aos sábados, no período da manhã, Jânio costumava
telefonar para mim. E muitas vezes ouvi esta súplica:
-Socorro,
Fernandinho, socorro, estou morrendo!
Eu
respondia:
-O senhor
está doente, passando mal?
Palavras
invariáveis do marido da dona Eloá:
-Estou
morrendo de tédio, não aguento mais!
-Por que,
presidente?
A
explicação era dada num tom de angústia:
-Candidatos
aos cargos de vereador, de deputado, e até de prefeito, invadem o meu tugúrio,
o meu sacrossanto lar, na ânsia de serem fotografados junto de mim. Nem sequer
os conheço! É gente de cabeça completamente vazia. Se fossem guilhotinados,
como a Maria Antonieta, as suas cabeças subiriam aos ares como balões,
perder-se-iam nas alturas!
Jânio então
solicitava:
-Por favor,
Fernandinho, almoce comigo. A Eloá vai servir o meu prato predileto, camarões
com quiabo. Venha aqui e falaremos sobre arte, poesia, literatura, coisas
elevadas. Comentaremos as parvoíces, os destrambelhos dos nossos políticos.
Assim me sentirei melhor...
E eu,
dezenas de vezes, ia almoçar com o Jânio. A conversa se estendia por horas a
fio, só se encerrando ao anoitecer. Ele se abria comigo, não escondendo nada,
nem mesmo pormenores de sua vida sexual, porém longe, é claro, da presença
discreta da dona Eloá.
Quando a
Adelaide Carraro (o sarcástico Agrippino Grieco a chamava de Adelaide
Escarraro) lançou em 1963 o seu romance autobiográfico Eu e o governador,
perguntei ao Jânio:
-Já leu
este livro, presidente?
O
mato-grossense não escondeu a verdade:
-Fiz
fuki-fuki com a Adelaide, numa banheira, mas ela carecia de carne, era ossuda,
e sou carnívoro como os tigres, os leões.
Rindo como
um garoto travesso, prosseguiu:
-Sabe quem
é o governador, no livro?
-Não.
-Sou eu.
Influenciado
por esse depoimento de Jânio, coloquei no capítulo XIII do meu romance satírico
O Grande líder, atualmente na sexta edição, a seguinte passagem, a fim
de descrever um dos hábitos do personagem principal, Piranha da Fonseca
Albuquerque:
“No palácio
acolhia os secretários em cuecas, ou dentro da banheira, enquanto a impudica
Joana D’Arc beijava as unhas dos pés do seu amado, sinuosas como roscas e
orladas de preto.”
Certa vez
eu e o Jânio estávamos à beira da piscina da sua casa, sentados em cadeiras de
lona. De repente, bebendo uísque, ele soltou estas palavras:
-Perdi os
meus direitos políticos, fui cassado em 1964, por causa do beliscão que dei
numa bunda.
A princípio
pensei que se tratava de brincadeira, mas ele continuou, de cara séria:
-Numa
recepção, antes do Golpe de 1964, eu havia me excedido no uísque e belisquei a
rechonchuda nádega esquerda da dona Yolanda Costa e Silva, esposa do comandante
do II Exército, o general Artur da Costa e Silva. Ele tomou conhecimento desse
episódio lamentável. Arrependo-me de ter agido de maneira tão soez, tão
imprópria de um censor dos atos imorais.
-E como o
Costa e Silva veio a saber disso?
-Creio que
a própria dona Yolanda, mulher honrada, queixou-se a ele. Talvez ela tenha
ficado com a bunda roxa, pois a belisquei fortemente.
Algo
eufórico, sob o efeito dos vapores do uísque, o Messias do bairro de Vila Maria
acrescentou:
-Fernandinho,
sou um bundófilo, apaixono-me por nédios bumbuns femininos, gosto de
comprimi-los, mas depois o remorso me atormenta. There is another man with’n me that’s angry with me.
Arregalei
os olhos e ele me esclareceu:
-É uma frase do filósofo inglês Thomas Browne,
no seu livro Religio Medici. Vou traduzi-la. “Dentro de mim há um outro
homem que está contra mim.”
Perguntei
como o vigoroso aperto na bunda da dona Yolanda gerou o processo causador da
perda dos seus direitos políticos. Explicou:
-Logo após
o Golpe de 1964, o general Humberto de Alencar Castelo Branco enviou-me um
pedido. Queria que eu redigisse um documento, para incentivar os civis a
apoiá-lo por sua investidura no cargo de presidente da República. Eu o atendi.
O documento, assinado por mim, foi divulgado de forma ampla pelas emissoras de
rádio e de televisão, pelos jornais do Brasil inteiro. Portanto, eu, Jânio
Quadros, era visto com simpatia no círculo dos militares do Golpe, eles não me
consideravam corrupto, ou subversivo, ou inimigo. O Castelo me admirava,
pretendia convocar-me no futuro.
E aí,
presidente?
-Aí, na
primeira lista de cassações, o almirante Augusto Rademaker e o brigadeiro
Francisco Assis Correia de Melo, integrantes do Comando Supremo do movimento
revolucionário, não incluíram o meu nome nessa lista. Depois de examiná-la, o
general Artur da Costa e Silva, ministro do Exército, lembrando-se do beliscão
que apliquei na bunda da dona Yolanda, exigiu a inclusão do meu nome. Devido ao
seu ódio, ao seu rancor, ao seu espírito vingativo, com base no Ato
Institucional número 1 (AI-1), fui cassado no dia 10 de abril de 1964.
Teci este
comentário:
-Presidente,
pequenas causas, grandes efeitos. Evoco a afirmativa do filósofo Blaise Pascal:
um diminuto grão de areia, un petit grain de sable, na bexiga de Olivier
Cromwell, chefe da revolução inglesa de 1645 que destronou e executou o rei
Carlos I, tirou a vida de Cromwell. Resultado, o grãozinho modifica a história
da Inglaterra...
Jânio
Quadros deduziu, após beber um gole de uísque:
-E querido
amigo, o rumo da minha vida foi alterado por causa do meu beliscão no glúteo
opulento, perturbador, da dona Yolanda.
Rimos a valer. Aliás, esse beliscão histórico é também descrito,
sem as minucias aqui apresentadas, nas páginas 112 e 113 do livro As
armadilhas do poder, do jornalista Gilberto Dimenstein, lançado em 1990
pela Summus Editorial e pela Folha de S.Paulo.
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