domingo, 19 de julho de 2020

FAZENDO PIPI, ELA EXAGEROU!


Vítima de enfarte, Guimarães Rosa faleceu em 19 de novembro de 1967, três dias após ter tomado posse na Academia Brasileira de Letras. Posse que ele adiava, por temer a emoção causada pela cerimônia. Eu o conheci em 1964. Nesse ano o seuGrande sertão: veredas” alcançara três edições na Alemanha. E merecidamente, pois Rosa fez, numa obra ím­par, o regional tornar-se universal.
Durante o meu primeiro encontro com Guimarães Rosa, logo depois do golpe de 31 de março de 1964, ele confessou:
-Sabe do que eu tenho medo, Fernando Jorge? É da institucionalização de uma ditadura militar no Brasil.
Perguntei se ele conhecia as palavras lapidares de Rui Barbosa sobre o militarismo, que eu iria colocar no meu livro “Cale a boca, jornalista!” lançado pela Editora Vozes e agora já na quarta edição. O au­tor de “Corpo de baile” explicou:
-Detesto os regimes de arbítrio. Fui vítima de um deles. Quando o nosso país rompeu as relações diplomáticas com a Alemanha nazista, em 1942, eu era cônsul em Hamburgo. Os seguidores de Hitler me internaram em Baden-Baden e tive, como companheiros de prisão, o embaixador Cyro de Freitas Vale e o pintor pernambucano Cícero Dias.
-E o que aconteceu?
-Senti-me muito deprimido. Mais tarde a Gestapo me liber­tou, em troca de diplomatas alemães. E voltando à vaca fria, como são as palavras de Rui Barbosa sobre o militarismo?
Tirei do meu bolso um papel com estas afirmativas da “Águia de Haia”, que li em voz alta para o Guimarães Rosa:
“O militar é a força obediente. O militarismo, a força dominante. O militar é o soldado servindo. O militarismo, o soldado rei­nando. O militar é a espada sob a lei. O militarismo, a lei debaixo da espada.”
Guimarães Rosa vibrou ao ouvir o juízo de Rui:
-Que maravilha! Imbatível verdade! É isto mesmo! Esse baiano tinha um imenso talento verbal e tais palavras são pedaços de latejante carne viva.
Em seguida, Rosa quis saber:
-Meu amigo, diga-me se eu, nos meus livros, exagerei no emprego de palavras novas, de neologismos.
Respondi:
-O senhor não exagerou tanto como a velha da ladeira.
Ele abriu mais os seus olhos de míope, bem curiosos atrás das grossas lentes:
-Velha da ladeira?
-Sim, aquela velha toda vestida de preto, magrinha, feinha, de pernas e braços fininhos. Ela exagerou, o senhor não.
Mal acabei de dizer isto, ergui-me do sofá e me pus a recitar:

                                    "Uma velha muito velha
                                    Foi mijar numa ladeira,
                                    Encheu rios e riachos,
                                    Inundou uma ribeira!
                                    Três engenhos pararam,
                                   Um frade se afogou,
                                  E o diabo desta velha
                                  Ainda diz que não mijou!”

            A gargalhada rabelaisiana do Guimarães Rosa, depois de ouvir estes versos populares, continua a ressoar nos meus ouvidos...
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Escritor e jornalista, Fernando Jorge é autor do livro Eu amo os dois, lançado pela Editora Novo Século.

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