Conheci
Monteiro Lobato em 1947, na cidade de São Paulo, quando ele estava morando num
apartamento na rua Barão de Itapetininga, que lhe havia sido cedido por Caio
Prado Júnior, fundador, com Lobato, da Editora Brasiliense, cuja livraria se
localizava no térreo do edifício da nova residência do prosador das Ideias de Jeca Tatu. Quem me apresentou
a Lobato foi o seu amigo Artur Neves, nascido em Ribeirão Bonito, fundador da
União Brasileira de Escritores de São Paulo e filho do poeta simbolista Aurélio
Neves.
Impressionou-me
o aspecto do criador do Sítio do
Picapau-Amarelo, o seu corpo magro, frágil, o seu rosto pálido, um pouco
esverdeado, no qual as sobrancelhas fortes, grossas, unidas, formavam contraste
com a cor esmaecida de sua fisionomia.
Ele
foi cordial, sorriu, cumprimentou-me, e o Artur Neves deu a seguinte
informação:
-Lobato,
este jovem escritor pretende ser o autor de um livro sobre o Aleijadinho.
Sentado
numa poltrona, no fundo da livraria Brasiliense, o pai da boneca Emilia
declarou, olhando para mim de modo profundo:
-Rapaz,
não se amofine, mas na minha opinião o Aleijadinho era um santeiro vulgar.
O
meu sangue ferveu, penso que até fiquei rubro, ele notou, pois logo quis se
mostrar mais suave:
-Não
me leve a mal, às vezes exagero.
Meio
contrafeito, passei a elogiar o Aleijadinho com certa exaltação. Fitando-me, os
olhos do Lobato se tornaram mais vivos e ele parecia estar se divertindo.
Sentia prazer, acredito, em chocar, escandalizar. Depois de enaltecer o
escultor mineiro, a quem chamei de “gênio indiscutível da nossa arte barroca”,
Monteiro Lobato se voltou para o Artur Neves e disse:
-Neves,
este rapaz tem opiniões firmes e as defende honestamente. Gosto disso.
Agradeci
o elogio. Perguntei:
-Que
conselho o senhor pode me dar para eu escrever com desembaraço, facilidade?
Coçando
o bigode quase branco, ele respondeu:
-Enriqueça,
antes de tudo, o seu vocabulário, lendo os bons dicionários da língua
portuguesa. Consulte sempre o do Caldas Aulete e o do Antônio de Moraes Silva,
cuja primeira edição é de 1789. Eu considero o Moraes um mestre da
Lexicografia. Os verbetes do seu dicionário foram escritos com clareza e
simplicidade admiráveis. São bem ricos, informativos, repletos de expressões
escolhidas com critério apurado. Verbetes que fazem parecer secos, pobres,
lacunosos, os verbetes dos outros arroladores de palavras.
Lobato
enfatizou:
-Rui
Barbosa e Euclides da Cunha foram insaciáveis devoradores de dicionários. O
primeiro chegava a corrigi-los e enriquecê-los, enfiando acréscimos nos seus
verbetes. Euclides, aliás, desde menino tinha a mania de colocar, nos punhos
brancos das suas camisas, as palavras cujo sentido ignorava, a fim de depois as
conhecer de forma clara e segura.
Monteiro
Lobato me contou que o autor de Os
sertões, após descobrir dezenas de erros gráficos na primeira edição da sua
obra-prima, ficou a noite inteira na oficina onde ela acabara de ser impressa,
raspando com um canivete os tais erros. Euclides fez isto em mais de quinhentos
exemplares, surpreendendo os tipógrafos da oficina.
-O
escritor verdadeiro deve ser assim inflexível, nunca deve aceitar falhas ou
erros nos seus textos – sentenciou Lobato.
Perguntei
o que é fundamental para redigir com brilho, originalidade. Como quem está
lecionando, ele prosseguiu:
-Inimigos de qualquer um disposto a escrever bem são
os lugares-comuns, as assonâncias, os cacófatos, o excesso de adjetivação, o
uso exagerado dos “ques”. Lugares-comuns superbatidos, mais exaustos que os
octogenários asmáticos quando sobem uma ladeira: chovia a cântaros, valente
como leão, a sorte lhe foi madrasta, o segredo é a alma do negócio, prometeu
mundos e fundos, ficou podre de rico, todo excesso é condenável, é o diabo em
figura de gente, o dinheiro não traz felicidade, alegria de pobre dura pouco,
não queira ser mais realista que o rei, livre como um passarinho, quem é vivo
sempre aparece, tem um parafuso a menos na cabeça...
Eu
e o Artur Neves começamos a rir e Lobato acrescentou:
-Exemplo
de assonância berrante, de eco ultra-sonoro, de aproximação fonética entre
vogais tônicas de palavras diferentes: naquele dia ele comia a valer e ia,
cheio de alegria, andar pela pradaria.
Depois
Lobato continuou, assumindo ares de pedagogo:
-Cacófato
famoso, clássico, vocês conhecem, é o do Camões no começo do soneto à Dinamene,
jovem chinesa amada por ele: “Alma minha
gentil, que te partiste...” Maminha,
substantivo, diminutivo de mama.
Artur
Neves pediu:
-Lobato,
dê para nós um exemplo de excesso de adjetivação.
O
autor de A chave do tamanho se
ergueu da poltrona e de forma lenta pronunciou esta frase: a prendada senhorita
Adalcinda Robélia Canabrava, de Jacareí, colheu hoje, no jardim risonho da sua
preciosa existência, mais uma cândida rosa odorífera.
Registrei
logo, num caderninho, a frase melosa e ridícula de cinco adjetivos. Também
reproduzi, nesse caderninho, toda a conversa.
Estimulado
pela verve de Lobato, eu quis saber:
-Qual
foi o escritor que mais o influenciou na formação do seu estilo?
Resposta
imediata, certeira como um tiro do pistoleiro Billy the Kid:
-Camilo
Castelo Branco. Desde os meus primeiros estudos em Taubaté, mergulhei nos
livros violentos, tempestuosos, do misantropo de São Miguel de Seide. Li e reli
Estrelas funestas, Luta de gigantes, Mistérios de Fafe, O olho de
vidro, A doida do Candal, Noites do Lamego, Cavar em ruínas, A bruxa de
Monte Córdova. Camilo, ao escrever, tinha a mesma naturalidade com que um
homem de boa saúde mija, porém esta minha enorme admiração não me impede de
reconhecer: às vezes ele claudicava. Vejam este cacófato do seu romance A corja, publicado em 1880: “sujeitos
de presença grave, um por cada vez,
entraram pressurosos”... Porcada, segundo o Aulete, é vara de porcos, obra
malfeita.
Um
tanto solene, após dizer que sabia de cor trechos da prosa camiliana, Monteiro
Lobato deixou fluir um desses trechos de sua boca, onde o bigode, um v
invertido, lhe dava uma certa semelhança com Charlie Chaplin:
“As
minhas árvores desconhecem-me nesta linguagem. Estão afeitas a verem-me
contemplativo, sereno e enlevado no azul do céu ou no lago verde que lá embaixo
se complana como bacia de águas precipitadas das catadupas do Gerez.”
Eu
e o Artur Neves aplaudimos e elogiamos a sua memória. Após indicar a página de Camilo
com esse trecho (“No Bom Jesus do Monte”), ele comentou:
-Ao
contrário do que escreveu Cervantes no Dom
Quixote, a memória tem sido para mim uma boa amiga. Palavras simples, as do
espanhol. “Oh, memoria, enemiga mortal de mi descanso”.
Dirigindo-se
a mim, Lobato me forneceu este conselho:
-Você
se acha no início da sua carreira de escritor. Portanto evite a repetição
frequente dos “ques” nos seus textos, eles devem ficar o mais possível
afastados um do outro. Salientei ao meu amigo, o professor Silveira Bueno, e
ele concordou: o uso constante do “que” é o maior responsável pela dureza do
estilo, ora como pronome relativo, ora como conjunção integrante. Há poucos
dias li num jornal do Rio de Janeiro estas palavras: o deputado que o criticou, que o chamou de leviano, não permitiu que o parlamentar adversário o aparteasse, já que o discurso que ouviu
era do tipo que ofende e que só merece desprezo. Observem, sete
“ques” numa frase, como pedras, um estorvo, no chão de pequeno caminho.
-E
a maneira de evitar este defeito? – indaguei.
O
quase sósia de Carlitos respondeu:
-Certa
ocasião, em 1922, na sede da Revista do
Brasil, da qual fui o diretor, eu e o Silveira Bueno concluímos: se a
oração é integrante, podemos eliminar o “que” com uma vírgula, uma elipse, a
omissão de duas ou mais palavras, de vocábulos fáceis de serem identificados.
Por exemplo, nesta frase: quiseram que o doente se recolhesse ao hospital.
Executada a medida, a frase fica assim: quiseram se recolhesse o doente ao
hospital. Existem, além desse, vários recursos para suprimir o “que”. Mas se não
for possível, devemos alterar a frase, modificar a sua estrutura.
Depois
deste conselho, Lobato garantiu:
-Não
pensem que sou um gramaticão. Satirizei os gramáticos no meu conto “O colocador
de pronomes”, escrito em 1924, onde se agita o meu grotesco personagem
Aldrovando Cantagalo, maníaco defensor dos dogmas gramaticais da língua de
Camilo. Opinião minha, inabalável: quase sempre os gramáticos escrevem
corretamente mal.
* * *
Descrevi
para o meu amigo Ênio Silveira, dono da editora Civilização Brasileira, o meu
único encontro com Monteiro Lobato. E perguntei se o conheceu:
-Conheci,
Fernando. Vou lhe contar algumas coisas interessantes sobre o Lobato. Eu tinha
dezoito anos e vivia desempregado, lá em São Paulo. Fiquei, naquele tempo,
amigo de uma senhora inteligente, poliglota, chamada Leonor Aguiar. Ela me
prometeu arrumar um trabalho e quis apresentar-me, no seu apartamento da
avenida Higienópolis, ao Monteiro Lobato, às cinco horas da tarde de um sábado.
Fui lá. Encontrei aberta a porta do apartamento. Na porta, colado, vi um
cartãozinho com a seguinte frase: “Ênio, feche a porta por dentro”. Obedeci e
entrando disse em voz alta: dona Leonor, já cheguei. Ouvi estas palavras: venha
aqui, estou no banheiro. Meio constrangido, avancei até o banheiro. E adivinhe
o que os meus olhos viram, Fernando.
-Você
viu a sua amiga pelada, tomando banho.
-Não,
estava vestida, mas havia um homem nu na banheira cheia d’água, sendo esfregado
vigorosamente por ela.
-Quem?
-Monteiro Lobato, depressa o reconheci, por causa das
suas sobrancelhas espessas, sempre comparadas a uma taturana, às lagartas
cabeludas. Fiquei sem jeito, confuso. E Lobato parecia estar deliciado,
enquanto a Leonor o esfregava com força, usando escova comprida. Diante da
minha cara espantada, ele indagou se eu nunca tinha visto um homem nu. Respondi
que sim, mas não naquela situação. Soltou uma risada e pediu para me sentar num
tamborete. Acomodei-me e ele perguntou se eu era parente do Waldomiro Silveira,
o criador da nossa literatura regional. Sou seu neto, respondi. Lobato o
enalteceu e me informou que lançara em 1920, como editor, o livro Os caboclos, do meu avô, de contos
primorosos, onde se destacavam as narrativas intituladas “Pijuca”, “Os
curiangos”, “Faiscador de carumbé.”
-Citou
estes três contos dentro da banheira?
-É,
citou, mas de súbito ficou de pé na banheira já sem água, completamente nu, e
enquanto a Leonor o enxugava, passou a explicar que pijuca é um cogumelo que à
noite brilha como fogo azul, que curiango é ave noturna de coloração
pardo-amarelada, e carumbé uma gamela de pau, usada nas minas de ouro e de
diamantes.
-E
depois, Ênio?
-Depois,
ainda nu em pelo, de pé dentro da banheira, ele me disse: vou lhe dar um cartão
para ser entregue ao Octalles Marcondes Ferreira, a fim de você obter uma
colocação na Companhia Editora Nacional, fundada por mim e por ele.
-Cumpriu
a palavra?
-Sim,
pulou da banheira, mesmo pelado, foi até uma escrivaninha, abriu uma gaveta e
pegou o cartão. Escreveu para o Octalles e me disse que no ano de 1929, em Nova
York, ele, Lobato, chefiava o escritório comercial do Brasil. Na ânsia de
ganhar dinheiro de modo rápido, jogou vultosa quantia na Bolsa daquela cidade,
dinheiro que não era seu, mas do governo brasileiro. Aí houve o crack da Bolsa e perdeu tudo. Cometera,
é inegável, um crime de peculato.
-Que
coisa, Ênio! As biografias do Lobato não descrevem esse episódio. O que ele fez
para não ser preso e processado?
-Vendeu
a propriedade dos seus livros à Companhia Editora Nacional, ao seu ex-sócio
Octalles Marcondes Ferreira. Com a venda, pôde repor o dinheiro.
-Você
passou a trabalhar nessa editora?
-Passei.
Um dia o Lobato apareceu lá na sala do Octalles, eu estava presente. O Octalles
me disse, diante do Lobato, que este queria deixar de ser editado pela
Companhia Editora Nacional, pois pretendia fundar, com o Caio Prado Júnior, a
Editora Brasiliense. Não houve ali nenhuma oposição do Octalles, mas este tirou
um documento de uma gaveta e o mostrou ao ex-sócio. Após ler o documento,
lágrimas jorraram dos olhos de Lobato. Lágrimas torrenciosas. Emocionadíssimo,
ele caiu de joelhos em frente do Octalles e abraçando as suas pernas lhe pediu
perdão, porque se esquecera de que havia vendido a propriedade dos seus livros
à Companhia Editora Nacional. Magnânimo, Octalles abriu mão, devolveu ao Lobato
o direito de dispor, como bem entendesse, dos seus próprios livros, inclusive
dos livros de literatura infantil.
Em
seguida o Ênio Silveira perguntou se eu sabia como foi o enterro do Lobato em
1948, no cemitério da Consolação. Respondi:
-O
Oswald de Andrade me descreveu de modo cômico esse enterro. Eu não acreditei no
que ele me contou, achei que era pilhéria, gozação. Diga-me como foi.
-Fernando,
parecia a cena de um filme do Fellini. Você conhece o poeta Rossine Camargo
Guarnieri, meu companheiro no Partido Comunista?
-Somos
velhos amigos, ele gosta muito de mim. Outro dia declamou, na minha casa, o seu
belo poema “Canto da esperança em louvor de Estalingrado”, composto no ano de
1946.
-Pois
é, lá no cemitério, quando o caixão com o corpo do Lobato ia descer à cova, o
Rossine pediu a palavra e trovejou: camarada Lobato, estamos aqui, os teus
irmãos do Partido Comunista do Brasil, seguidores do nosso grande líder Ossip
Vissarionovitch Stalin, para afirmar que tu foste um companheiro leal, incapaz
de desonrar a nossa bandeira, os teus santos ideais, na dura peleja por uma
sociedade mais justa, mais livre, mais humana, mais igualitária, mais
democrática. Então, nesse momento, o professor Phebus Gikovate berrou: Monteiro
Lobato não era stalinista, era trotskista! Rossine, pegando fogo, reagiu:
Lobato era stalinista! E o Phebus: mentira, era trotskista, seguidor de Lev
Davidovitch Bronstein, mais conhecido pelo nome Trotski! Um gritava:
stalinista! E o outro: trotskista! Ambos se engalfinharam, trocando
xingamentos, socos, pontapés, bofetões. E caíram na cova aberta. A custo os
tiraram do buraco. Um sócio do Clube Piratininga, após a guerra dos dois,
opinou: Lobato não era stalinista nem trotskista, era monarquista, um ardoroso
admirador de D. Pedro II. Dona Purezinha, a viúva do falecido, misturava as
suas lágrimas com risos nervosos.
Concluindo,
o Ênio Silveira pronunciou estas palavras:
-E eu, Fernando, embora tentasse me conter, não parei
de rir. Creio que até a alma do Lobato, vendo aquilo, explodia em
gargalhadas...
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