Sou
grato ao Marcos Caldeira Mendonça, colega que é o maior defensor do progresso
de Itabira e dos itabiranos, por me permitir evocar em O Trem alguns episódios da minha vida de jurado dos programas de
televisão. O meu objetivo é fornecer dados, informações curiosas, a um futuro
historiador desses programas.
Contarei
agora como, num dos tais programas, recebi duas vaias imensas, tão estrondosas
como dois peidos do gigante Pantagruel, comilão de apetite infinito, famoso
personagem de uma obra satírica do escritor François Rabelais (1494-1553),
profundo analista das debilidades da alma dos seres humanos.
Antes
de ser jurado Flávio Cavalcanti no Rio de Janeiro, na TV Tupi, Canal 4, fui seu
jurado em São Paulo no programa “Flávio Especial”, transmitido às terças-feiras
pela mesma emissora, para todo Brasil.
O
costureiro Dener, o advogado Clécio Ribeiro, o ator Carlos Zara, as atrizes Eva
Vilma e Márcia de Windsor, além de outros, eram meus colegas de júri.
Carlos
Zara, ator bonitão, muito vaidoso, começou a ter inveja de mim no programa,
sentindo-se ofuscado devido às frases de efeito que eu soltava. Certa noite, o
programa estava no ar, ele me fitou e não se conteve:
–
Flávio, não sou como certos jurados seus que gostam de impressionar, soltando
frases de efeito sem conteúdo.
O
apresentador comentou:
–
Fernando Jorge, parece que o Zara, seu colega de júri, fez uma crítica a você.
Respondi
de modo firme:
–
Meu caro Flávio, aconselho o Carlos Zara a tirar os dois a do seu sobrenome e substitui-los por um e e um o, passando a
chamar-se Carlos Zero.
A
minha resposta foi tão fulminante que as pessoas do auditório, o Flávio e os
demais jurados caíram numa gargalhada fragorosa, idêntica à se Júpiter, o
soberano dos deuses na mitologia romana, pai do raio e do trovão.
No
intervalo dos comerciais o Carlos Zara se aproximou de mim, queixando-se:
–
Você me humilhou em rede nacional de televisão.
Minha
resposta:
–
Apenas me defendi. Respeite-me como seu colega de júri que eu o respeitarei.
Não tenho sangue de donzela tímida, anêmica e desprotegida.
Abriu
a boca, arregalou os olhos e nunca mais quis me gozar. Orgulho-me de jamais
aceitar qualquer tipo de humilhação, de possuir sangue espanhol e árabe, desses
dois insignes povos repletos de brio, de dignidade.
Num
outro programa o Flávio avisou:
–
Atenção, meu júri, dentro de dez minutos vai aparecer aqui, no palco, o meu
querido colega Sílvio Santos, pois vou entrevista-lo. Finda a entrevista,
vocês, do júri, devem dar a nota para ele. A nota máxima é cinco.
De
fato logo apareceu no palco o Sílvio Santos, todo sorridente, cabeludo, ainda
sem as operações plásticas no rosto, a ostentar uma roupa de calças largas como
as do cantor Elvis Presley (1935-1977), o maior símbolo do rock n’roll nos anos
de 1950. Aliás, o cabelo do Sílvio, como o do Elvis, parecia estar lambuzado de
brilhantina... As “macacas de auditório” gritaram, pularam assanhadíssimas,
palmas vigorosas ecoaram, até os membros do júri se ergueram, aplaudindo. Eu
também me levantei, contrafeito, mas não bati palmas, pois jurados precisam ser
sóbrios, tranquilos, imparciais, equilibrados.
Para
cada resposta que o Sílvio Santos dava ao Flávio, ele recebia aplausos intensos
do auditório e dos meus colegas de júri. Eu permanecia frio, imperturbável.
Concluída
a entrevista, o Flávio pediu:
–
Jurados, comecem a dar as notas para o Sílvio. Qual é a sua nota, minha querida
Márcia de Windsor?
Ela
se extravasou:
–
Flávio, que nota posso dar para este homem lindo, encantador, ma-ra-vi-lho-so?
Cinco é pouco! Eu dou cem mil, duzentos mil!
Os
aplausos estrugiram como fogos na noite de São João. Em seguida o Flávio
perguntou ao Dener qual era a sua nota. Magrelo, bem pálido como mimosa virgem
prestes a ser deflorada, o costureiro deu a nota:
–
Concordo totalmente com a minha colega Márcia de Windsor. Cinco é pouco! Eu dou
um milhão para esse homem simpatiquerrimo, eleganterrimo!
Trovoada
de palmas. Sílvio Santos, no palco, sorria feliz, eufórico como quem ganhou
milhares de dólares num cassino de Las Vegas. Todos os meus colegas de júri
agiram dessa forma, mas havia chegado a minha vez e o Flávio indaga:
– Escritor e jornalista Fernando Jorge, que nota você
dá para o meu querido colega Sílvio Santos?
Limitei-me
a erguer o braço direito e a mostrar só um dedo na mão. Flávio repetiu:
–
Que nota você dá?
E
eu, sereno, com o dedo espetado no ar:
–
Estou dando apenas a nota um.
A
vaia que recebi parecia o estouro de uma bomba:
–
Uuuuuuuu! Fora, fora, careta, quadradão! Fora, fora! Uuuuuuuuu!
Flávio
tentou silenciar o auditório e não conseguiu. A barulhada me deixou impassível.
Continuei sereno, frio como um sujeito calculista, desprovido de emoções, e o
Sílvio Santos se conservava sorridente. Então o Flávio, com bastante esforço,
logrou acalmar o auditório:
–
Por favor, auditório, por favor, desejo saber porque o jurado Fernando Jorge
deu apenas a nota um para o meu querido colega Sílvio Santos. Diga-me,
Fernando, você quer ser diferente, original? Por que deu esta nota tão baixa
para o Sílvio?
Minha
explicação:
–
Até fui generoso, Flávio. Em vez de um, eu devia lhe dar a nota zero.
As
vaias estrondejaram novamente:
–
Uuuuuuuuu! Fora, fora! Careta! Quadradão! Fora, fora, fora! Uuuuuuuuu!
Outra
vez, com dificuldade, o Flávio fez o auditório ficar quieto. Levantei-me e
fingindo estar irritado (às vezes sou ator), pronunciei estas palavras:
–
Flávio, se eu não puder justificar a minha nota, retiro-me do programa, não
quero mais ser seu jurado, vou embora.
O
silêncio foi completo e com a mais absoluta calma fui dizendo:
–
Não sou inimigo do senhor Sílvio Santos, que está aí sorrindo ao seu lado,
Flávio. Pelo contrário, até o admiro, por ser um bom empresário, porém dei a
nota um porque ele soltou duas grandes mentiras ao responder às suas perguntas.
Primeira mentira, garantiu que é solteiro. Pura mentira. É casado. Segunda
mentira, afirmou que não tem filhos. Tem sim, é pai de duas filhas adolescentes.
Citei
o nome da esposa e os nomes das duas filhas. E prossegui:
–
Sílvio Santos, o senhor se encontra aí todo sorridente, junto do Flávio. Ouça,
não me desminta, senão será pior. Respeite a sua esposa, as suas duas filhas.
Coisa feia! Deixe de mentir, assuma, aceite a verdade, o senhor é casado.
Veja,
amigo leitor, como as pessoas em certas circunstâncias, mudam de repente.
Aquele auditório hostil, depois de me xingar e vaiar estrepitosamente, passou a
me aplaudir com entusiasmo! O escritor francês Eduard Laboulaye (1811-1883),
não errou ao salientar no livro Le prince
Caniche: o povo é maleável como cera, mas o seu comportamento depende da
mão que o maneja...
No
dia seguinte, após a cena aqui descrita, eu estava na Assembleia Legislativa de
São Paulo, onde exercia o cargo de chefe da Divisão Técnica de Biblioteca,
quando o telefone tocou e uma funcionária minha atendeu. Informou-me que
assessora do Sílvio Santos desejava falar comigo. Peguei o fone e ouvi ela
dizer: Sílvio o convida para ser entrevistado por ele no seu programa da TV
Globo. Surpreso, esclareci:
–
Não posso aceitar o convite. O Sílvio deve estar com raiva de mim e quer
vingar-se, porque o desmascarei ontem, como jurado do Flávio Cavalcanti.
A
moça protestou, alegando: o Sílvio não é vingativo. Embora ouvindo isto,
mostrei-me bem desconfiado:
–
Ora, então por que ele quer me entrevistar?
–
É porque acha que o senhor dá Ibope na TV.
Argumentei:
–
Vou, mas com uma condição. Diga ao Sílvio que se ele me humilhar na entrevista,
reajo, vou manda-lo a merda e xinga-lo sem parar.
Fui,
o programa era gravado num amplo e velho teatro do bairro do Bexiga. Na
plateia, mais de quinhentas pessoas, a maioria mulheres.
Ao
chegar a minha vez de ser entrevistado, antes da gravação, eu disse ao
ex-camelô da carioca Rua da Alfandega:
–
Sílvio, vamos evitar uma cena desagradável. Você quer vingar-se de mim, não é?
Está entupido de ódio, pois o desmascarei no programa do Flávio.
Sempre
sorridente, pôs a mão no meu ombro e se abriu:
–
Fernando, pensa mesmo que estou zangado? Você não me conhece, Fernando! Até
gostei do seu julgamento. Se dissesse, por exemplo, que tenho vinte amantes,
apesar de ser eu casado, não me importaria, pois o que quero, olhe, acredite, é
que falem de mim, bem ou mal, mas que falem de mim!
Durante
meia hora o Sílvio Santos entrevistou-me, sem me ofender. Que homem esperto! É
capaz de dar nó em gravata debaixo de piscina cheia. Foi por isto que se tornou
o dono do Baú da Felicidade, aliás um baú mais da felicidade dele do que da dos
outros...
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Escritor e jornalista, Fernando Jorge é autor do
livro As lutas, a glória e o martírio de Santos Dumont, lançado pela
HaperCollins.
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