domingo, 19 de janeiro de 2020

OBEDEÇA NÃO VIRE DEFUNTO


Os 26 mil habitantes de Biritiba-Mirim, na Grande São Paulo, foram proibidos de morrer, pois o prefeito Roberto Pereira da Sil­va, do PSDB, conhecido como “Jacaré”, havia enviado à Câmara Municipal dessa cida­de um projeto de lei, a fim de propor isto. Biritiba-Mirim é dona de um só cemitério, que está superlotado, com túmulos até nos seus corredores. Jazi­gos foram ocupados por mais de duas famílias e polêmica resolução federal impedia o prefeito de mandar construir uma nova necrópole, devido a questões ambientais. Eis o começo do projeto:
“Roberto Pereira da Silva, prefeito municipal de Biritiba-Mirim, no uso das atribuições que lhe são conferidas por lei, faço saber que a Câmara Municipal aprovou e eu promulgo a seguinte lei:
            Artigo 1º - Fica proibido morrer em Biritiba-Mirim.
            Parágrafo único. Os infratores responderão pelos seus atos.
            Artigo 2º - Esta lei vigorará até a construção de um novo cemitério municipal.
Artigo 3º - Os munícipes deverão cuidar da saúde para não falecer”.
Depois de concluir a leitura do projeto, lembrei-me de um verso da Divina Comédia de Dante Alighieri, o 46 do canto III do ln­ferno: ­

            “Questi no hanno speranza di morte”
            (“Estes não têm a esperança de morrer")

O poeta italiano, nessa passagem, mostra uma multidão desesperada, a agitar-se no vestíbulo do reino dos demônios. Apenas a morte a libertaria, trazendo-lhe a paz... Como esses condenados descritos por Dante, os biritibanos jamais poderiam ir para a cidade dos pés juntos. A lei os obrigaria a permanecer vivos. Se um deles parasse de respirar, o prefeito Roberto lhe faria esta pergunta:
            -Quem autorizou o senhor a morrer?
            Resposta do defunto:
            -Aconteceu, prefeito, eu não tenho culpa.
            -Tem sim. O senhor violou o artigo 1º da Lei Anti-Defunto.
            -Juro, doutor Jacaré, aconteceu.
            -Se o senhor esticou a canela, foi porque também desrespeitou o artigo 3º da referida lei, que determina que os munícipes, para não morrer, deverão cuidar da saúde.
            -Mas eu estava com saúde perfeita! Morri de repente.
            -E quem mandou o senhor morrer de repente?
            -Aconteceu, sei lá!
            -Olhe, as suas palavras não me convencem. Então o senhor não sabia que aqui, em Biritiba-Mirim, é proibido morrer?
            -Eu sabia, doutor Jacaré, eu sabia, mas repito, aconteceu!
            -Ouça, o parágrafo único do artigo 1º da Lei Anti-Defunto especifica que os infratores responderão pelos seus atos. Portanto, eu or­deno: volte a viver. Ressuscite, vamos!
            -Doutor Jacaré, como é que eu vou fazer tal coisa?
            -Ressuscite, não seja teimoso!
            -Juro, eu não consigo, não consigo!
-Trate de dar um jeito. Peça a ajuda do salvador do Brasil, o Lula.
            -Se eu fizer isto, morrerei mais uma vez.
Aí, nesse momento, o prefeito se enfureceria, chamaria um policial e berraria:
-Prenda esse defunto estúpido! Eu lhe ofereci a chance de ressuscitar e ele não quis. Que fique na cadeia, até o dia do seu julgamento!
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Escritor e jornalista, Fernando Jorge é autor do livro As lutas, a glória e o martírio de Santos Dumont, lançado pela HaperCollins.

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