No
programa de televisão do Gugu Liberato, o Ronaldo Ésper sugeriu que o Clodovil
Hernández teria sido assassinado. E uma ex-empregada do costureiro, Maria
Guimarães, deu apoio ao Ronaldo. Na opinião dela um político de maus bofes
contratou um garotão lindo para o matar. A doutora Maria Hebe Pereira de
Queiroz, advogada do Clodovil, rapidamente contestou essa história.
Ao
ver tal discussão, lembrei-me de um episódio. Em 1993, após a Editora Mercuryo
lançar o meu livro Pena de morte: sim ou
não? Os crimes hediondos e a pena capital, fui convidado a comparecer no
programa do Clodovil, na TV Gazeta, a fim de ser entrevistado por ele.
Antes
de entrar no recinto do programa, atravessei enorme salão que havia sido
pintado de branco. Saía de suas paredes um fortíssimo cheiro acre de tinta. O
cheiro invadiu aquele recinto, já repleto de pessoas, cerca de duzentas, a
maioria moças e senhoras meio idosas. Ali o Clodovil estava em maior altura,
num estrado, junto de estreita e comprida mesa, onde colocou vistoso aparelho
de servir café. Ele mesmo o preparava e o servia a todos entrevistados.
Como
o cheiro da tinta se espalhara no recinto, o costureiro, antes do programa ir
ao ar, não se conteve e se pôs a berrar:
-Canalhas!
Canalhas! Lambedores de bundas! Isto é uma conspiração, um sujo plano dos meus
inimigos para me deixar tonto, doente, intoxicado, e assim destruir o meu
programa! Seus filhos nojentos de cadelas de rua!
As
expressões pesadas se sucediam, jorravam da sua boca de lábios grossos. Tive a
impressão de estar ouvindo a ruidosa descarga de uma latrina entupida de
cagalhões. Rubro, apoplético, a espumejar, de olhos esbugalhados, que pareciam
querer pular das órbitas, ele vociferou:
-Seus
bostas, seus piolhos de cafetinas sifilíticas, eu já tenho convite da TV Globo,
eu já tenho!
A
fúria do Clodovil me chocou, pois a sala se achava cheia de mulheres jovens e
senhoras de certa idade, mas para o meu imenso espanto, elas o aplaudiram,
bateram palmas...
Sentei-me
diante dele. O programa foi ar. Mais calmo, soltou estas palavras:
-Eu
aposto, Fernando, que você não sabe quase nada a meu respeito.
Respondi,
tranquilo:
-Clodovil,
conheço bem a sua vida.
-Não
acredito, então conte o que sabe de mim.
-Você,
na infância, fazia roupas para bonecas. Aos dezesseis anos vendeu seis modelos
de vestidos para o gerente de uma loja e conseguiu, graças à venda, mais
dinheiro do que o seu pai ganhava em um mês de trabalho.
-Nossa,
é verdade, mas aposto, você não conhece outras coisas da minha vida.
Duas
câmeras de televisão avançaram e focalizaram o meu rosto. Afirmei:
-Conheço.
Nas décadas de 1960 e de 1970, você brilhou muito, vestiu as mulheres mais
elegantes de São Paulo. Tornou-se rival do Dener. O sucesso o levou a ganhar,
em 1968, um programa na Rádio Panamericana, porém foi demitido, por criticar as
roupas da dona Yolanda Costa e Silva, esposa do general Costa e Silva,
presidente da República. Em seguida participa de um programa feminino na TV
Globo. Também teve de sair, após brigar com a apresentadora Marilia Gabriela.
Outro fato, você chegou a ser ator teatral na peça Seda pura e alfinetadas.
Surpreso,
gesticulando, o Clodovil me interrompeu:
-Nossa,
como você é perigoso! Continue, estou es-pan-ta-di-ssi-mo!
-Expulso
da TV Globo, você foi para a TV Manchete. E lá acabou sendo demitido duas
vezes, a primeira em 1986, por chamar a Assembleia Constituinte de Assembleia
Prostituinte.
-Ah,
meu Deus Fernando, você conhece todos os podres da minha vida! Estou
en-ver-gon-ha-di-ssi-mo!
-Você
quer que eu pare?
-Não,
continue, quero sofrer.
-Vou
parar.
-Não,
não pare, eu exijo!
-Está
bem. Você também foi demitido da CNT.
-E
sabe por que, Fernando?
-Sei,
é porque você perguntou à Adriane Galisteu, logo depois da morte do Ayrton
Senna, se ele funcionava na cama, se não era broxa, impotente. A pergunta gerou
protestos, revolta, indignação. Viram na pergunta um desrespeito à memória do
piloto recém-falecido.
-Ai,
meu Deus, que língua a sua, Fernando!
-Me
desculpe, Clodovil, mas sob este aspecto você não tem autoridade para me
criticar.
-É,
não tenho, mas admita, você é perigoso.
-Admito,
porém acho você mais perigoso que a minha pessoa.
Nesse
momento ele pegou o meu livro sobre a pena de morte e disse:
-Fernando,
aposto que você não sabe que o Santo Agostinho apoiava a pena de morte.
-É
claro que sei, Clodovil. Então você não leu o meu livro. Conto este fato no
capítulo dois da minha obra. Adoro Santo Agostinho. Gosto até de citar uma
frase dele em latim.
Ergui-me
da cadeira e citei a frase:
-Apure
os ouvidos. Quid est autem diu vivere,
nisi diu torqueri? Dou a tradução. “Que outra coisa é uma larga vida, senão
um largo tormento?”
Ligeiro,
o Clodovil informou:
-Fernando,
eu li esta frase na Bíblia, hoje de
manhã.
-Desculpe-me,
você não leu.
-Ai,
Fernando, não me desminta, li hoje de manhã na Bíblia. Já li esta frase mais de cem vezes na Bíblia.
-Não
leu.
-Ai,
meu Deus, você está me chamando de mentiroso? Repito, eu li esta frase hoje de
manhã na Bíblia.
-Garanto,
não leu, não pode ter lido.
-Ai,
Fernando, além de me chamar de mentiroso, você quer me humilhar? Por que está
fazendo isto comigo, por quê? Fiz algum mal a você, fiz? Diga.
Expliquei,
pacientemente:
-Clodovil,
você não pode ter lido esta frase na Bíblia,
pois Santo Agostinho nasceu no ano 354 da nossa era e esse livro sagrado é
anterior a ele, surgiu séculos antes de sua vinda ao mundo. É uma questão de
lógica. Portanto a frase do autor da famosa obra De civitate Dei (“A cidade de Deus”), não está na Bíblia, nunca esteve, o seu nome não
aparece nela.
Batendo
na testa, o Clodovil gemeu:
-Ai,
que fora que eu dei nesse programa de televisão! Que vergonha, que vergonha!
Sinto-me hu-mi-lha-do, a-rra-sa-do!
Fiquei
com pena dele, pois todas as pessoas na sala do programa começaram a rir, até
os cameramen. E veio à minha memória
esta frase de Tomás de Kempis (1380-1471), escritor ascético alemão, inserida
no livro A imitação de Cristo (“De
imitatione Christi”):
“Muitas
vezes rimos, quando devemos chorar” (Saepè
vane ridemus, quando merito flere debemus).
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Escritor e jornalista, Fernando Jorge é autor de Drummond e o elefante Geraldão, que acaba de ser lançado pela
Editora Novo Século e cuja quarta edição já está quase esgotada.
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